Partindo da citação de Luccock, “when and if fascism comes to America, it will not be labeled ‘made in Germany’, it will not be marked with a swastika, it will not even be called fascism; it will be called, of course, ‘Americanism’” (Luccock, 1938). Ora, os mais recentes processos judiciais sobre o direito ao aborto nos EUA mostram que a cada dia que passa o sonho americano é cada vez mais fascista e antifeminista.
Para compreender a história da legislação americana sobre o direito ao aborto, deve-se definir o conceito de “viabilidade do feto”, já que é este o termo que mais polémica provoca nesta matéria. Contudo, a melhor forma de o compreender é através da análise do Caso Roe v. Wade.
Em 1970, Norma McCorvey, “Roe” de nome fictício para proteger a sua identidade, recorreu a uma ação federal contra o procurador distrital da cidade de Dallas, Wade, onde defendeu que tinha direito a abortar já que a sua gravidez resultara de uma violação, que mais tarde Roe negou. Wade representava o Estado do Texas, que se recusava a legalizar o aborto. Assim, o caso passou de instância em instância até chegar ao Supremo Tribunal, que, a 22 de Janeiro de 1973, tomou uma decisão que mudaria por completo a democracia nos EUA. Com sete votos a favor e dois contra, o tribunal decretou que qualquer mulher, independentemente da razão, tem o direito a escolher realizar uma interrupção voluntária da gravidez, até ao feto se tornar viável (Roe v. Wade, 1973). Ficou ainda estabelecido que a viabilidade do feto era o ponto no “estágio de desenvolvimento que torna a vida [do feto] possível, sob condições normais, fora do útero” (Webster, 1996, p.1590), ou seja, por volta das 24 semanas de gestação. Na altura, a Casa Branca estava sob a Administração republicana de Nixon, e este foi um processo que dividiu por completo o país entre os movimentos pro-Roe (pro-choice) e anti‑Roe (pro-life). A decisão Roe obrigou todos os estados a alterar as suas leis estaduais que restringiam e/ou proibiam o aborto.
Contudo, não tardou muito para que a decisão Roe fosse confrontada pelas “forças democráticas”. Em 1982, o Pennsylvania Abortion Control Act impôs a exigência de um “consentimento informado” e um período de reflexão de 24 horas, sempre que uma mulher quisesse abortar. Desta forma, os conservadores trouxeram de novo a temática do direito ao aborto para o Supremo Tribunal. Entre 1973 e 1992 muito mudou no Supremo Tribunal, com a distribuição dos juízes passando de uma maioria progressista, para uma maioria conservadora, que viu no caso Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania v. Casey (Caso Casey) uma possibilidade de revogar a decisão Roe. Porém, a pluralidade na opinião dos juízes impediu a revogação do direito ao aborto, mas também legitimou a limitação do mesmo. Os Estados adquiriram o direito de, no interesse de proteger a vida da criança indefesa ainda por nascer, proibir o aborto se o feto for viável (Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania v. Casey, 1992). Estava aberta a caixa de pandora e começava o caminho obscuro em direção ao ‘americanismo’ que Luccock advertiu.
"[...] a pluralidade na opinião dos juízes impediu a revogação do direito ao aborto, mas também legitimou a limitação do mesmo."
Consequentemente, desde os anos 90 que têm surgido cada vez mais tentativas estaduais de passar legislação mais restritiva sobre o direito ao aborto. Apesar de, em 2021, 71% da população americana ser a favor do aborto, e, em 2019, terem sido registadas 630 mil interrupções voluntárias da gravidez (Statista, 2021), os estados ignoram a voz dos cidadãos e seguem a sua visão ideológica conservadora a todo o custo, mesmo que isso implique a erradicação dos direitos das minorias.
Porém, estes estados não estão sozinhos na luta pela objetificação e controlo patriarcal e misógino do corpo feminino, já que um dos grandes impulsionadores desta luta foi o ex‑presidente dos EUA, Donald Trump.
Durante o seu mandato, Trump sempre se manifestou a favor do movimento pro-life, conseguindo reduzir o financiamento para as clínicas e organizações que informam e fazem abortos, ao proibir que o orçamento, tanto da saúde, como do planeamento familiar, fosse direcionado para essas agências (Abortion: How do Trump and Biden’s policies compare?, 2020). Trump nunca teve medo de mostrar a sua personalidade sexista, misógina, e repugnante, e isso ficou evidente não só pela conhecida expressão “grab’em by the pussy”, como também pela sua entrevista à MSNBC em que se mostrou a favor da ilegalização do aborto, exceto em casos de violação, incesto e perigo para a mãe, e disse ainda que, no caso de este ser ilegalizado, as mulheres que a ele recorressem deveriam ser punidas (Glenza, 2016). Além disso, desde 2016 que Trump dizia que faria o necessário para escolher juízes que revogassem a decisão Roe, e ao longo do seu mandato conseguiu introduzir três novos juízes de visão mais conservadora, sendo a última Amy Coney Barrett, que substituiu Ruth Bader Ginsburg. Assim, Trump foi o elemento crucial para que, colocando “America first and only America first”, o americanismo antifeminista enraizado nas profundezas da população conservadora emergisse sem qualquer vergonha de uma forma legitimada.
De facto, a ignobilidade de Trump e os seus sucessivos ataques aos valores democráticos, legitimaram os estados mais conservadores a restringirem cada vez mais o direito ao aborto, sendo de destacar o Mississippi Gestational Age Act de 2018 (House Bill 1510) que proíbe o aborto após as 15 semanas desde a conceção, exceto em casos de deficiência severa do feto ou de emergência médica (Hassan, 2021). Esta norma legislativa trata-se, assim, de um ataque à decisão Roe.
Desta forma, o debate sobre o direito ao aborto volta ao Supremo Tribunal com o Caso Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization. Dobbs representa os interesses do estado do Mississippi, e Jackson Women’s Health Organization é a única clínica de saúde feminina a realizar legalmente interrupções voluntárias da gravidez nesse estado. Ora, os ativistas desta clínica iniciaram este processo judicial por considerarem o Gestational Age Act uma violação do direito fundamental ao aborto. Apesar de este caso não ter chamado a atenção do público internacional, foi o grande impulsionador das medidas anti-aborto mais restritivas que hoje geram contestação, não só nos EUA, como em todas as sociedades democráticas (Hassan, 2021). A pedra angular das democracias liberais ocidentais ficou ainda mais corrompida pelo sexismo, machismo, e misoginia do sistema patriarcal norte-americano.
De facto, as sociedades ocidentais estão cada vez mais chocadas com medidas como a lei anti-aborto do Texas (SB8) que, sendo uma verdadeira afronta à decisão Roe, proíbe o aborto após as seis semanas de gestação, mesmo em casos de violação. Contextualizando, seis semanas são duas semanas após uma menstruação atrasada, ou seja, grande parte das mulheres não faz a mínima ideia de que está grávida, e se descobrir depois dessa data já não pode abortar. Além disso, a lei incita os cidadãos a aplicá-la denunciando todos os que ajudarem as mulheres a abortar “ilegalmente” no estado do Texas, ou noutro estado. Assim, a SB8 promove uma mobilização das massas populares conservadoras para, cumprindo o seu dever para com os valores da tradição religiosa, perseguirem os “inimigos internos” do Estado, que são todos aqueles que ajudam as mulheres a abortar (Astor, 2021). Defendem-se os valores patriarcais em detrimento dos valores democráticos, o que perpetua a subordinação da mulher enquanto um objeto reprodutivo cujo único direito que tem é dar à luz.
Assim, urge saber o que os atuais atores democráticos pensam sobre esta situação, e que implicações podem decorrer dos atuais casos com o House Bill 1510 e a SB8.
Por um lado, o Supremo Tribunal é hoje constituído por uma maioria conservadora que foi sendo construída ao longo de sucessivos mandatos republicanos (Giansiracusa, 2021), e isso tem vindo a ter cada vez mais repercussões ao nível do direito ao aborto. Desde que a SB8 foi lançada, o Supremo Tribunal já autorizou quatro vezes que a lei continuasse em vigor até que a sentença final seja enunciada (Liptak, 2022b); o problema é que não se sabe ao certo quando isso será, e no entretanto milhares de mulheres vêm‑se forçadas a seguir com gravidezes indesejadas e potencialmente perigosas. O Supremo Tribunal é um órgão que, sendo historicamente “masculino”, hoje é composto por três mulheres (Liptak, 2022a). Trata-se de um órgão “democrático” elitista e patriarcal. Contudo, o maior problema que o Supremo Tribunal enfrenta é a falta de legitimidade. Ao longo do mandato de Trump foi havendo cada vez mais controlo do Presidente sobre o Supremo Tribunal através dos juízes que este ia apontando para o órgão judicial. Hoje em dia, o Supremo Tribunal é constituído por ‘políticos’ em vez de juízes imparciais, e isso deslegitima a justiça norte-americana (Liptak, 2021).
"[...] o maior problema que o Supremo Tribunal enfrenta é a falta de legitimidade"
Por outro lado, a Administração Biden, que diz defender os direitos de todas as mulheres sobre os seus próprios corpos, tem-se revelado incapaz de fazer o necessário para travar esta situação. No seu primeiro ano enquanto presidente, Biden pareceu bastante indiferente, e isso só mudou com o aumento dos protestos e da dimensão da questão, após o SB8 (Lerer, 2021; Texas abortion: Biden vows ‘whole-of-government’ response to new law, 2021). Enquanto Presidente dos EUA, Biden podia aumentar o número de juízes no Supremo Tribunal e eleger juízes democratas que garantissem os direitos das mulheres, mas caso o fizesse nada impediria o próximo presidente republicano de fazer uma ação contrária e reestabelecer uma maioria conservadora no órgão judicial. Mais recentemente, a Administração Biden anunciou que, sendo este ano a celebração do 49º aniversário da decisão Roe, reforçará o seu compromisso para com a proteção dos direitos das mulheres sobre os seus próprios corpos (Vice President Kamala Harris, 2022). Resta agora passar do papel para ação e garantir que a inércia da presente administração não traz mais consequências, não só para as mulheres, mas também para toda a sociedade democrática norte‑americana.
É mais do que claro que a linha que separa a democracia do autoritarismo é bastante ténue, e considerando que os EUA já abandonaram há muito os valores democráticos, tudo indica que o ‘americanismo’ veio para ficar.
Porém, apesar de este parecer ser só um problema relacionado com o direito do aborto e as liberdades individuais das mulheres, pode ter implicações em muitos outros direitos fundamentais (Glenza, 2021). Ao nível de direitos nos EUA, estes ou foram escritos na Constituição, ou foram conseguidos com o recurso a casos judiciais no Supremo Tribunal, como o direito ao aborto, que foi fundamentado no direito constitucional à privacidade (Roe v. Wade, 1973). Ora, se o direito ao aborto pode ser revogado, nada impede que os outros direitos alcançados da mesma forma também o sejam. Assim, nenhum dos direitos conseguidos por via do Supremo Tribunal, e não inscritos na Constituição, está a salvo, o que coloca em causa o direito ao casamento homossexual e ao planeamento familiar (Abrams & Carlisle, 2021).
"Ora, se o direito ao aborto pode ser revogado, nada impede que os outros direitos alcançados da mesma forma também o sejam."
Em suma, a democracia nos EUA está degradada e atravessa a sua fase mais sombria, o que acarreta cada vez mais consequências, tanto a nível interno, com a divisão entre aqueles que defendem a democracia nos EUA e aqueles que querem acabar com ela, como a nível internacional, já que os estados ocidentais estão a perder o pilar democrático que foi fundamental na reconstrução do pós-Segunda Guerra Mundial, e o líder hegemónico na luta dos direitos humanos. O liberalismo americano revelou-se o melhor caminho rumo ao fascismo e antifeminismo, e a previsão de Luccock parece cada vez mais certa. Resta saber o que a comunidade internacional e os cidadãos norte-americanos insatisfeitos vão fazer contra o ‘americanismo’ atual.
Referências Bibliográficas:
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Luccock, H. (1938, Setembro 11). Keeping Life Out of Confusion. Comunicação oral apresentada na Igreja de Riverside, Nova Iorque.
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Webster, N. (1996). Webster Encyclopedic Unabridged Dictionary of English Language. Nova Iorque: Gramercy Books.
Sobre o autor:
Daniel Ramos dos Santos, natural do Porto e estudante do 2º ano da Licenciatura de Relações Internacionais da Universidade de Coimbra. Interessade pela política e direitos humanos. Membro voluntárie do dezanove, website português sobre a problemática LGBTQI+.
É lamentável existirem países onde a mulher, e outras minorias, bem como os mais desfavorecidos são repetidamente menosprezados e esquecidos… e dizem pertencer a um pais democrático. Não devem ser esquecidos os direitos de todos os seres humanos…. Liberdade
Parabéns pelo artigo…