Experiências queer não vêm escritas num manual, nem numa lista, mas, se há um elemento de cultura bissexual (quase) universal é o do esquecimento. E se falarmos de relações entre membros do mesmo género feminino, ou de representação de um género mais feminino, nenhuma experiência é mais universal que a fetichização destas relações.
Bissexualidade performativa acontece quando mulheres cisgénero, que se identificam como heterossexuais, participam em comportamentos homoeróticos, não pelo prazer da experiência, mas pelo prazer de quem as assiste, na vasta maioria das vezes, homens cisgénero heterossexuais (Fahs, 2009).
Um dos maiores exemplos do fenómeno é a grande performance nos Video Music Awards, de 2003, da Madonna, Britney Spears, Christina Aguilera e Missy Elliot, onde as três primeiras cantoras se beijaram no palco. Também se pode invocar o Vídeo da música ‘’Can’t Remember to Forget You’’, de Shakira com Rihanna, que demonstra as cantoras num cenário íntimo, a tentar imitar um relacionamento lésbico, mas não de forma pessoal, onde o objeto de prazer é a parceira. Ao passo que estas mulheres publicitaram as suas carreiras por apelarem ao prazer de homens heterossexuais, pessoas dentro da comunidade LGBTQ+ continuam ainda a lutar para poderem mostrar o mais básico nível de afeto em público, sem discriminação.
Mas não é só em performances musicais que bissexualidade performativa existe: também é um problema em filmes ou séries, onde a personagem se relaciona com outras mulheres mas o sentimento não é desenvolvido nem explorado; e em Reality TV, onde o ato passa de performativo para apenas o(s) espetador(es) presentes, alargando-se para uma mais vasta audiência.
"[...] os espetadores masculinos heterossexuais procuram a satisfação de assistir, e participar, nos atos de bissexualidade entre duas mulheres, criando uma grande pressão para as mulheres envolvidas, especialmente quando estão numa relação com o homem-espectador. "
Como é que a performance de bissexualidade entre mulheres heterossexuais se transmite de on-screen para off-screen? Como os atos são realizados com o prazer masculino observador em mente, os espetadores masculinos heterossexuais procuram a satisfação de assistir, e participar, nos atos de bissexualidade entre duas mulheres, criando uma grande pressão para as mulheres envolvidas, especialmente quando estão numa relação com o homem-espectador. Um estudo demonstrou que a maioria da pressão para com mulheres heterossexuais de agir de forma homoerótica provinha dos seus parceiros, enquanto que, para mulheres bissexuais e lésbicas, provinha de desconhecidos ou não-parceiros (Fahs, 2009). Também é interessante indicar a procura de mulheres bissexuais por casais em aplicações de encontros.
Existe, claramente, uma distinção entre a experiência e o conceito de fase. Não existe nada de errado com pessoas, de qualquer identidade sexual ou de género, procurarem experiências românticas e sexuais fora da sua identidade estabelecida. Estas experiências só se tornam problemáticas quando criam estereótipos negativos em volta da identidade de atração multigénero. Um dos maiores conflitos que a comunidade bissexual enfrenta é a redução de toda a identidade a uma ‘’Fase’’, que antecede a “escolha” entre ser hétero ou homossexual. Um ensaio de Debra Moore e Fran Norris concluiu que, no geral, bissexuais (e outras identidades de atração multigénero) questionam mais frequentemente a sua identidade comparativamente a indivíduos hétero e homossexuais (Moore & Norris, 2005). Esta luta interna transmite resultados assustadores na dimensão de saúde mental de indivíduos bissexuais, tendo um estudo demonstrado que, comparativamente a indivíduos de orientação hétero e homossexual, bissexuais tem uma mais elevada taxa de suicídio e mais danos na saúde mental (Pompili et al., 2014).
Contudo, mesmo admitindo que a esmagadora maioria das demonstrações de bissexualidade performativa sejam realizadas por mulheres heterossexuais, até que ponto é que estas devem ser culpadas pelos estereótipos negativos colocados nos relacionamentos LGBTQ+? De certo modo, a performance, por ser utilizada para satisfazer o homem heterossexual, acaba por cair na culpa da ideia patriarcal de que a mulher serve como objeto do homem. Mesmo as demonstrações de afeto realizadas para satisfação das envolvidas, só pelo facto de terem uma audiência, acabam por ser alvo do fetiche masculino, independentemente de quem as realiza. As mulheres heterossexuais envolvidas tornam-se cúmplices de bifobia quando recusam reconhecer que os seus atos têm consequências nefastas para mulheres em relacionamentos com outras mulheres (ou pessoas de identidade de género apresentada como mais feminina).
O ensaio de Fahs inclui um estudo com mulheres de vastas identidades sexuais sobre as suas experiências com membros do mesmo género. Uma das questões revelou que, das mulheres heterossexuais entrevistadas, 69% admitiram ter, ou ter tido, atração ou experiências com o mesmo género, sendo que 37% destas mulheres demonstraram visões homofóbicas. Uma das heterossexuais entrevistadas, previamente envolvida em bissexualidade performativa, admitiu não gostar da ideia de relações homossexuais entre dois homens, baseando-se em princípios religiosos, dizendo que ‘’parece mais errado para dois homens do que para duas mulheres’’ (Fahs, 2009). Outra mulher com experiência igual admite que se envolveu com mulheres para provocar os seus parceiros e outros homens que assistiam, contudo, quando questionada sobre a opinião sobre direitos LGBTQ+, ela respondeu: ‘’Não quero casar com alguém gay e descobrir cinco anos depois, porque isso tornaria a minha vida horrível (…) e eu acho que é normal bani-los da igreja para que Deus não possa abençoá-los’’. Também se nota que muitos dos homens que se sentem atraídos por atos homossexuais entre mulheres acabam por ter atitudes homofóbicas para com homens gay (Fahs, 2009).
Por outro lado, mulheres que, de facto, se identificam como LGBTQ+, discutem como a bissexualidade performativa afeta a luta pelos seus direitos e liberdades. Muitas mulheres demonstram desconforto causado por homens à procura do fetiche lésbico, procurando tornar as demonstrações genuínas de atração romântica e/ou sexual de duas mulheres num relacionamento num espetáculo para eles, o que Fahs descreve como uma ‘’exploração direta dos sentimentos, desejos e sexualidades genuínos [destas mulheres]’’ (Fahs, 2009).
"Isto transmite o ideal de que relacionamentos sexuais entre mulheres apenas acontecem com um certo ideal corporal, com certas ações particulares de modo a satisfazer certas audiências, mas não as mulheres envolvidas. "
Esta ‘exploração’ afeta diretamente as mulheres da comunidade LGBTQ+ que caem no modelo patriarcal de beleza, ou seja, as representadas nos meios de media que atraem o observador masculino. Nos media, estas mulheres idealizadas são envolvidas em homoerotismo para aumentar audiências e popularidade do filme/série/show em questão. Isto transmite o ideal de que relacionamentos sexuais entre mulheres apenas acontecem com um certo ideal corporal, com certas ações particulares de modo a satisfazer certas audiências, mas não as mulheres envolvidas. Nem em filmes LGBTQ+ as mulheres da comunidade escapam ao observador masculino, existindo, primeiramente, muito menos cenas sexuais entre dois homens do que com mulheres, e, em segundo lugar, a representação do relacionamento sexual lésbico com a inclusão de close-ups e elementos pornográficos desenhados para o observador masculino.
Sendo assim, o grande problema está na mentalidade masculina heterossexual de que as ações realizadas por mulheres são pensadas para eles, especialmente nas demonstrações de afeto. Experiências são para ser aproveitadas, independentemente da sexualidade e identidade de género das pessoas envolvidas. Tem de se combater as ideias segundo as quais a identidade lésbica e as demonstrações entre duas mulheres giram em torno do prazer do observador masculino, e as experiências com o mesmo género estão reservadas, e só serão aceites, apenas ao feminino.
Referências Bibliográficas:
Fahs, B. (2009). Compulsory Bisexuality?: The Challenges of Modern Sexual Fluidity. Journal of Bisexuality, 9(3–4), 431–449. https://doi.org/10.1080/15299710903316661
Moore, D. L., & Norris, F. H. (2005). Empirical Investigation of the Conflict and Flexibility Models of Bisexuality. Journal of Bisexuality, 5(1), 5–25. https://doi.org/10.1300/J159v05n01_02
Pompili, M., Lester, D., Forte, A., Seretti, M. E., Erbuto, D., Lamis, D. A., Amore, M., & Girardi, P. (2014). Bisexuality and suicide: A systematic review of the current literature. The Journal of Sexual Medicine, 11(8), 1903–1913. https://doi.org/10.1111/jsm.12581
Ver também:
Tee Noir. (2020, Novembro 22). Performative Bisexuality: Y’all Not Tired? https://www.youtube.com/watch?v=3umRD7SOUNw
Sobre a autora:
Joana Gomes, 20 anos, Aveiro.
Estudante de Relações Internacionais na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
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