É facto que cada geração tem as suas particularidades, um traço geral que a afeta de forma unânime. É facto, também, que cada geração acredita ter sido a vítima de maiores desafios, sejam estes sociais, económicos ou políticos. Talvez seja o distanciamento entre gerações e a possível ignorância aprofundada de características que definem cada uma delas que as antagoniza umas face às outras - a presença exacerbada da tecnologia representa para as gerações mais velhas um “facilitador” no dia-a-dia, a oportunidade de aceder a conhecimento generalizado e meios de comunicação diversos. Mas são ignorados os problemas acrescidos das redes sociais, a pressão colocada no indivíduo e o cyber-bullying; olha-se também para os jovens adultos, de forma geral, como “preguiçosos”, uma reação apreensiva às elevadas taxas de desemprego e dificuldades em conseguir propriedade privada ou habitação, ao mesmo tempo que se descarta a crise imobiliária atual e as diferenças substanciais quanto à existência de propriedade e o custo dos terrenos, que, entre outros, afastam a realidade passada da presente .
Em contraste com as gerações mais antigas, eu própria fui acompanhada por tal mentalidade desde infante, que a minha geração é a portadora de mais problemas e impasses, de que nasci na geração errada. Primeiro em protesto contra as correntes de música populares, o funk, o lirismo pesado de sexualização da mulher no pop comercial; depois quando amadureci perante um mundo que parecia para sempre infantilizado, tendo as redes sociais como causa, os vídeos virais de menos de um minuto que parecem já ser responsáveis por efeitos estudados de défice de atenção. Ainda hoje o repito, aos 19 anos, que nasci na geração errada.
A minha argumentação é simples e direta. O que faz de uma geração pior que outra senão a realidade indubitável de que a sua curta existência aponta já para uma dúvida geral?: Se haverá mais alguma geração a seguir a esta, se nascer nesta geração significa nascer na última geração da Humanidade; uma Geração, naturalmente, Errada.
Devemos a esta dúvida geral à presença constante de um fator singular: a crise. A crise tornou-se-nos cedo um parceiro, um termo tão multifacetado, que o seu significado mais concreto é agora deixado à interpretação de cada um: caos, catástrofe, implosão, entre outros.
Nascemos e crescemos por meio de uma crise financeira, a de 2008, o sucessor da Grande Depressão. A palavra “crise” foi-nos, assim, introduzida como sinónimo de falta, escassez, carência. As consequências do crash de 2008 perduram nas nossas vidas interminavelmente. A dívida pública permanece, a desvalorização da moeda ainda se faz sentir, os constantes ciclos de inflação são agora uma realidade dada. Por sua vez, estes termos económicos traduzem-se em destabilização social: maiores taxas de desemprego, pobreza generalizada, perda de qualidade de vida. Uma geração inteira que cresce num estado cataclísmico onde a sua prioridade enquanto sociedade é reativar a Economia. Tendências consumistas sobem, o marketing e a publicidade empurram-nos produtos pela goela abaixo, e nós, sem saber dizer “não”, perdemo-nos como cartões de crédito expirados.
"Uma geração inteira que cresce num estado cataclísmico onde a sua prioridade enquanto sociedade é reativar a Economia. "
De raízes ateias e influências espirituais, acredito que tudo acontece por uma razão, que um evento universal é, senão uma lição, uma premonição. Pessoalmente, a Crise Financeira de 2007-2008 foi precisamente isso - um aviso provocado por uma exaustão humanitária, cujas consequências manifestar-se-iam sem piedade ou mercê. Poucos anos depois, essas consequências revelam-se sob a forma de uma nova crise, uma que não pode ser aniquilada por empréstimos ou pagamento de dívidas, e uma que parece ter afirmado a sua estadia fatalista eterna, uma crise enraizada em toda a nossa existência. Fala-se, por isso, dela como uma crise Ambiental - a crise climática afeta esta geração por mais que uns quantos dias de chuva inesperados.
Os negacionistas argumentam que não há motivos de preocupação, pois estamos simplesmente a assistir a um evolucionismo perverso, em que o planeta sofre as suas metamorfoses indefesas. Felizmente, cientistas e climatólogos admitem a culpa da Humanidade nos fenómenos de aquecimento global, subida do nível das águas do mar e a extinção sucessiva de espécies. Mais especificamente, apontam a culpa às empresas, às sociedades financeiras e aos governos. Por seu turno, estas parcelas socioeconómicas transmitem as responsabilidades da crise climática à população. Deixam os cidadãos incapazes de direcionar grandes impactos para salvar o mundo, enquanto aprofundam os seus hábitos desastrosos com o objetivo único de conseguir lucro. O ciclo assim dá a sua volta completa. Uma crise criada pela ganância do Homem, que podia ser atempada e até reduzida, mas que cai nas mãos dos menos indicados para a reverter. A ruína geracional continua.
Com isto, “crise” ganha um novo tom, duplamente antagónico e catastrófico, em que se aponta falta de ação, mas também excesso de danos passados. “Crise” já não é apenas uma coisa singular. Também já não é passageiro, algo possível de suportar numa década. “Crise” para de ser do controlo do Homem, crise está agora nas mãos de uma força maior que qualquer um de nós. “Crise” pode ser da responsabilidade de uma geração, mas ser castigo para outra, para a Geração, inevitavelmente, Errada.
Em 2020, o Homem retoma a sua parcela de participação na criação de uma nova crise, desta vez, sanitária - uma parceria de sucesso entre a humanidade e a imprevisibilidade da Mãe Natureza. Decerto não foi nada de novo, a Covid-19. No século XIV, gerações azaradas viveram a Peste Negra; durante a 1ª Guerra Mundial, a geração que sobreviveu a um trauma sistémico sentiu a Gripe Espanhola. Na realidade, pode-se até argumentar que uma epidemia vivida no século XXI é, senão um favor, uma sorte. Deve-se isso à tecnologia, à informação e ao conhecimento, à destreza dos campos da medicina e da investigação. Concordo, parcialmente. Não seria melhor concluir que esta mesma destreza deveria ter a capacidade de antecipar tais crises, ou ainda evitar até o seu total aparecimento? É possível também que estas reflexões minhas sejam apenas utopismo, ou ingenuidade - algo naturalmente incompatível com uma integrante da Geração Errada.
Atendendo ao ano de 2023, a palavra “crise” não deixa de sofrer metamorfoses. Ela é social, humanamente violenta, vil, malvada, até. É a crise das fobias sociais, léxico novo surge - já não é “homofobia”, porque o ódio irracional passou a ser tão alargado para uma comunidade inteira que agora trata-se de LGBTQIA+Fobia. Porém, ainda assim, a Transfobia é de tal modo intensa que este grupo social merece um rótulo autónomo. Argumentos vazios repetem-se, de que “em Portugal não há racismo”, país este onde, estatisticamente, mais de 62% dos portugueses manifestam crenças racistas (Fernando, 2023). Em países de maior voz e atenção mundial como os Estados Unidos da América, não duvido que estes valores sejam muito mais elevados. A misoginia e o machismo ainda vivem livres, o funk que permitiu a introdução deste artigo comprova-o. Comparativamente a décadas passadas, o mundo parece sorrir. Mas olhar para ele mais de perto desengana todos. Negros e brancos podem apanhar o mesmo autocarro e sentar-se lado a lado; 52,6% das mulheres portuguesas em 2022 trabalharam (Pordata, 2023); homossexuais não serão presos por manifestarem a sua sexualidade em público, em maior parte dos países desenvolvidos. A diferença em relação a outras décadas, outras gerações, é que a lei pública não escrutina estes grupos sociais. Mas é importante manter em mente que, nesta geração, a lei também não faz questão de os proteger.
"[...] a palavra “crise” não deixa de sofrer metamorfoses. Ela é social, humanamente violenta, vil, malvada, até. "
A crise, particularmente a social, é agora amplificada pela mesma a ser aprofundada doravante, a crise tecnológica. Nas redes sociais, o ódio é propagado como um vírus num software. Ele é expresso sem consequências, justificado pelo conceito sensível do “Free Speech”. O ódio chega a todos, aos influenciáveis, aos ignorantes, aos reles por natureza. É ensinado como doutrina aos mais jovens. Pré-adolescentes são manipulados por influenciadores como o Andrew Tate, programados para obstruir o progresso de ondas feministas e o avanço de mentalidades mais abertas, desafiados a conduzir a nossa geração aos “bons velhos tempos”, de dominância machista e etnicamente branca. Estes pré-adolescentes serão brevemente adultos e, se o planeta o permitir, pais. Serão a representação da nossa geração, uma Geração, previsivelmente, Errada.
E se o planeta o efetivamente permitir, que será do mundo? Totalmente automatizado, computorizado, há quem aponte para as previsões dos desenhos animados dos anos 70 sobre “O Futuro”: carros voadores, rôbos falantes em casa, programas de computador autónomos. Já conhecemos os primeiros modelos deste último. O Chat GPT, por exemplo, mostra-nos uma janela para um mundo mais fácil, de informação rápida e concisa. Suponho até que este artigo poderia ter sido escrito por ele. Confesso que ganhei curiosidade em saber como ficaria esse tal artigo sem qualquer tipo de consciência humana, mas confesso também que nunca usei tal programa, nunca sequer abri o seu URL no meu computador. Confesso, por fim, que é simplesmente por medo. Medo de alimentar um sistema demasiado primitivo para conhecer as suas repercussões; medo de, pelo meio, perder a única coisa que a minha Geração Errada guarda consigo, o seu coração. Vejo, também já hoje, arte criada por I.A., inteligência artificial. Quadros inspirados por Claude Monet, sons reproduzidos por uma ordem familiar ao ouvido, narrativas de ficção originais à sua capacidade máxima. Certos estão hipnotizados por estas capacidades inovadoras, outros, felizmente, estão em choque. Em Nova Iorque, mais de 200 artistas e escritores para televisão protestam contra a NBCUniversal e a Radio City Music Hall, em parte contra a utilização cada vez mais relevante de I.A. para a criação de arte. “Não se pode tirar o elemento humano da escrita”, disse o músico Tommy Bayiokos (Piccoli & White, 2023). Neil Gaiman revolta-se em nome da próxima geração de escritores, Geração esta, consequentemente, Errada.
Termino esta minha enumeração alongada das crises dos que vivem no século XXI, mas mais importante, das crises que não desaparecerão tão cedo. De facto, se há algo em comum que posso apontar à denotação lata de “crise” na minha geração, é que estas são apenas a ponta do iceberg do conjunto de instabilidades catastróficas que nos acompanharão durante o resto das nossas existências, conjunto este que deduzo, com pena, serem causa de um fim à Humanidade, pelo menos como a conhecemos agora.
Poderia agora reservar parágrafos para propor soluções de como ultrapassar estas crises; de como a nossa geração ainda pode dar a volta ao colapso do clima, às temperaturas elevadas que em 2050 tornar-se-ão insuportáveis para milhares de espécies do planeta Terra, e eventualmente atingirão a nossa; de como o que é preciso é colocar em ordem uma série de medidas políticas esquerdistas para recompor a sociabilidade da nossa condição humana. Todavia, escolho citar um Professor pseudo-niilista que redirecionou a minha perspetiva sobre qualquer previsão da existência de uma próxima geração: “O importante não deveria ser salvar o mundo, mas sim criar um mundo que mereça ser salvo.”
Criar um mundo que mereça ser salvo é, decerto, a chave. Infelizmente, do outro lado dessa porta trancada por uma fechadura analógica, acredito não haver nada: uma sucessão de crises que acabam com o mundo, a nossa geração a última a viver nele, erradamente.
Referências Bibliográficas:
Dos Santos, M. (2020, September 15). As crises sanitárias ao longo dos anos. Meon. Retrieved June 20, 2023, from https://www.meon.com.br/meonjovem/alunos/as-crises-sanitarias-ao-longo-dos-anos
Fernando, I. (n.d.). Discriminação Racial. Lisboa Acolhe. Retrieved June 20, 2023, from https://lisboaacolhe.pt/discriminacao-racial/
LGBTQIA+fobia: Legislação e os desafios da população. (2022, June 28). Memed+. Retrieved June 20, 2023, from https://blog.memed.com.br/lgbtqiafobia/
Piccoli, S., & White, P. (2023, May 15). Dispatches From WGA Picket Lines Day 14: Neil Gaiman, Jordan Klepper & Dave Foley Among 200 Writers Picketing NBCUniversal Upfronts. DEADLINE. Retrieved June 20, 2023, from https://deadline.com/2023/05/writers-strike-dispatches-neil-gaiman-amp-others-hit-nbcuniversal-upfronts-in-new-york-1235367170/
Taxa de emprego: total e por sexo (%). (n.d.). Pordata. Retrieved June 20, 2023, from https://www.pordata.pt/Portugal/Taxa+de+emprego+total+e+por+sexo+(percentagem)-549
Sobre a autora:
Selena de Sousa.
Tripeira de 19 anos, estudante de Relações Internacionais na Universidade de Coimbra e cronista existencialista part-time.
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