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Marco Lisi

Esperança e Alienação: uma análise do estado da política portuguesa com Marco Lisi

Para discutir o momento político vivido em Portugal, entrevistámos o investigador Marco Lisi. Antes de aprofundar propriamente o tema da entrevista, pedimos que nos apresentasse um pouco o seu percurso académico e profissional, bem como as influências intelectuais que formaram o seu pensamento .


Eu venho da área da Ciência Política. Fiz a Licenciatura em Ciência Política na Universidade de Florença, a minha cidade de origem. Seguidamente, no último ano da Licenciatura, antes da reforma de Bolonha, fiz Erasmus em Portugal. O último ano da Licenciatura era dedicado à dissertação e decidi, assim, fazê-la sobre o caso português, nomeadamente sobre a integração europeia de Portugal.

Assim, fui conhecendo o país e a história, continuando depois o meu percurso na Ciência Política: primeiro com o mestrado no ISCTE e uma tese sobre - aí mudei um pouco de tema - o caso do Partido Comunista Português na democratização. Voltei para Florença para o doutoramento, pois na altura ainda não havia a oferta de doutoramento em Ciência Política propriamente dita em Portugal - estamos a falar dos anos 2000-2002. Portanto, voltei para Florença, embora já tivesse decidido continuar o estudo sobre o caso português, que tenho acompanhado, numa perspetiva mais comparativa, ou seja, olhando para outros países do sul da Europa. Participei em vários projetos que tinham a ver com as novas democracias da Europa do Sul, sobre os partidos, nomeadamente sobre o Partido Socialista, mas também numa perspetiva mais alargada e comparativa. Depois, tive a sorte de encontrar aqui [em Portugal] emprego fixo que, conjuntamente com razões familiares, me levaram a fixar cá há mais de 25 anos.


Como lê a presente situação política? Considera que estamos de facto perante uma crise política ou na formação de uma crise política?


Relativamente à questão da crise, eu diria que não há, por enquanto, condições políticas para crise. Temos um governo com uma maioria estável, e nessas condições sabemos que é raro haver crises políticas. Ainda por cima, considerando o sistema político português, que é um sistema que tem partidos políticos muito coesos e muito centralizados na direção, sobretudo na figura dos líderes, é algo pouco provável. Agora, é claro que, se acontecer uma crise, há de ser por algum choque externo. Isso pode acontecer, nomeadamente numa derrota eleitoral forte, ou uma forte crise económica, ou um caso de corrupção que afete as figuras principais do governo. São todas condições que potencialmente podem afetar a estabilidade deste governo, mas estamos a falar aqui de cenários hipotéticos, não há condições estruturais para podermos falar de uma crise iminente.

" [...] sabemos que é raro haver crises políticas. Ainda por cima, considerando o sistema político português, que é um sistema que tem partidos políticos muito coesos e muito centralizados na direção, sobretudo na figura dos líderes, é algo pouco provável."

O caso português é um caso que, é certo, tem uma margem de incerteza, por causa da figura presidencial - ao contrário de outras democracias parlamentares, temos aqui um semipresidencialismo - e o Presidente não é uma figura marginal como noutras democracias parlamentares, tem um poder importante, e, portanto, tem sempre alguma arbitrariedade em perceber se há condições para uma crise, até para recorrer à dissolução do Parlamento e a novas eleições. Isto é sempre uma janela de oportunidade para o Presidente intervir e, mesmo em condições de estabilidade, criar novas soluções.


Considera, então que, numa perspetiva mais institucional, as condições das instituições portuguesas ainda não apresentam sinais de crise ou desgaste que pode culminar numa ausência de solução política futura nas próximas eleições?


Por enquanto não há nenhuma crise institucional. O Presidente manteve-se bastante alinhado e, até há pouco tempo, disse que não queria criar nenhum obstáculo ou constrangimento ao governo e à atual maioria. Esta crise política pode, eventualmente, ao tornar-se uma crise permanente, agravar-se e criar condições para que o Presidente julgue haver necessidade de dissolver a Assembleia da República.

Mas, como disse, estamos longe de chegar a este cenário, que provavelmente nunca vai acontecer antes das eleições europeias do próximo ano. As eleições são um termómetro muito importante da popularidade e do apoio que o governo tem. Portanto, aí o Presidente tem, de facto, um indicador mais objetivo e neutro que pode apoiar decisões no sentido de dar a palavra outra vez aos eleitores. Ou, por exemplo, pode haver outra condição, no caso do Plano de Resiliência a nível europeu que, se falhar no cumprimento das metas, um objetivo importante do país, coloca em causa a posição de Portugal perante as instituições europeias. Este pode ser outro pressuposto mas, mesmo assim, o momento de avaliação será feito mais para a frente quando tivermos uma maior visão acerca do cumprimento dos objetivos e, aí, também poderá ser um outro instrumento que o Presidente tem nas mãos para tomar as decisões.

Mas, agora, as crises políticas são conjunturais. Não é normal que um governo com uma maioria absoluta tenha tão em mente essas crises políticas, por isso é que eu disse que há aqui um desgaste permanente e que, de certeza, se vai refletir nas sondagens, que demonstram uma diminuição significativa do apoio ao Partido Socialista.


"Não é normal que um governo com uma maioria absoluta tenha tão em mente essas crises políticas, por isso é que eu disse que há aqui um desgaste permanente e que, de certeza, se vai refletir nas sondagens, que demonstram uma diminuição significativa do apoio ao Partido Socialista."

Na sua opinião, considera que o Presidente dissolveria a Assembleia da República se houvesse uma alternativa estável ao governo, neste sentido uma reorganização à direita que aceite uma coligação com o Chega?


Aqui há dois pontos. O primeiro é haver sinais claros de uma mudança do ponto de vista da maioria, ou seja, que, de facto, a esquerda perdeu a maioria do ponto de vista do apoio junto da sociedade e dos eleitores. E, portanto, há sinais claros de uma viragem, e isso constitui o primeiro pressuposto, no sentido de tornar evidente a mudança da opinião pública em relação ao que têm sido os votos expressos nas últimas eleições legislativas. O segundo, é ver como esta maioria de direita se exprime, e forma toma dentro do Parlamento. E aqui, há duas lógicas. A lógica aritmética, de ver quais são as forças necessárias para criar esta maioria alternativa: nós não sabemos como vai ser a evolução dos próximos meses, mas pode ser que o PSD junto com a Iniciativa Liberal, depois de uma hipotética eleição, tenha uma maioria; ou, então, se for necessário alargar essa maioria, e incluir o caso do Chega, aí temos de ver em que condições o apoio do Chega viabiliza este tipo de maioria, e quais são os constrangimentos.

O caso do Chega é muito difícil e torna muito complicado construir [uma lógica de] maioria de direita, se for preciso o apoio deste partido. Em primeiro lugar, porque o Chega disse que só entraria no governo com ministros próprios, e isso não é bem o desejado pelo Presidente da República. Portanto, isso é um problema que cria aqui um conflito entre o Presidente, que tem a posse do governo, e a vontade do Chega em viabilizar esta maioria. Se esta solução, de facto, não for viável e o Presidente não a apoiar - independentemente da estratégia dos líderes - aqui o líder do PSD pode dizer a certa altura, como parece ter feito recentemente, que não quer fazer uma aliança com o Chega. Neste caso, não há maioria clara de direita. O que pode haver é eventualmente um governo militar - muito arriscado, muito duvidoso, e terá sempre uma legitimidade muito limitada e uma forte oposição do ponto de vista dos partidos de esquerda e do próprio Chega.

Mas, independentemente da estratégia dos líderes, há, eventualmente, a hipótese de fazer um acordo como foi feito no caso da Geringonça, ou seja, um apoio parlamentar negociado, mais ou menos especificamente com os partidos que ficam fora do Governo, mas que apoiam um determinado governo. E nesse caso, não sabemos bem se o Presidente vai aceitar ou não uma fórmula.

Eu acho que esta reconfiguração da Direita e esta incerteza, sobretudo o papel antissistémico do Chega, por enquanto, dá uma garantia de alguma tranquilidade ao PS e estabilidade, pelo menos no futuro próximo.


Falando agora da Geringonça. Na sua opinião, considera que a Geringonça abriu um precedente na política portuguesa que anteriormente estava pautada por uma política de governação ao Centro e uma alternância de blocos entre Esquerda e Direita?


Sim, sem dúvida que a emergência dos acordos denominados de Geringonça foram, talvez, o momento mais importante da transformação do sistema partidário português no período democrático. Foi, de facto, uma mudança significativa, onde foi ultrapassada uma barreira que tinha durado 40 anos, e constituiu não só uma mudança na política portuguesa e nas dinâmicas de relacionamento entre os partidos de esquerda, mas também ao nível internacional. Constituiu um exemplo importante no caso espanhol, onde emergiram, também, acordos semelhantes, e noutros países que olharam para a solução com os partidos da esquerda chamada radical (o Bloco de Esquerda, os Verdes e o Partido Comunista) como algo que poderia ser exportado e repetido noutros contextos.

Isto foi, sem dúvida, uma das mudanças do sistema partidário mais significativa ao longo de todo o período democrático, independentemente do resultado das políticas.


Considera que a própria forma como os partidos políticos atuam na sociedade contribui para um desgaste da política em geral e, talvez, no culminar não de uma crise institucional em si porque o funcionamento regular das instituições não está em causa, mas sim numa crise existencial da vida política portuguesa?


Eu considero que sim. Acho que os partidos são responsáveis, numa forma geral, porque claro que há formas de atuação diferentes entre os partidos, por um cada vez maior afastamento dos eleitores do debate político e do interesse pela política. Isso acontece por várias razões.

Primeiro, porque a política partidária tem sido muito fechada, muito elitista, muito oligarca, muito centralizada, muito pouco inclusiva e aberta às novas dinâmicas da sociedade. Todas as iniciativas que têm vindo a ser feitas para o relacionamento com a sociedade têm sido feitas predominantemente, sobretudo nos partidos de governo, de cima para baixo, ou seja, no sentido de orientar e conduzir a sociedade civil, e não tanto de ouvir o que a sociedade tem para dizer, ouvir as principais reivindicações, ouvir os novos problemas que emergem na nova sociedade. E isso, a meu ver, tem resultado no crescente afastamento dos jovens das formas tradicionais de fazer política. Não é verdade que os jovens não se interessam pela política, eles continuam a ter um grande interesse, só não se revêem na forma como essa política tem sido feita pelos partidos. E isto, a começar pela escolha dos candidatos, que é uma escolha feita sem qualquer transparência, feita através dos comités das direções partidárias. Como disse há algumas exceções, primeiramente o caso do Livre, que tem adotado estas primárias, mas a nível dos grandes partidos, os candidatos têm sido escolhidos de uma forma, como disse, muito exclusiva e fechada. E isso reflete-se, também, a nível demográfico - com uma predominância cada vez maior dos homens em relação às mulheres, que só não tem sido pior por causa da lei das quotas de género que têm sido implementadas depois de 2007 para a eleição dos representantes - mas se nós olharmos para as direções partidárias, 70 ou 80% dos órgãos dirigentes continuam a ser homens e as mulheres continuam a ser afastadas. Para não falar de outras minorias, como já foi falado no caso dos jovens, mas também de outros grupos com maior dificuldade.


"Não é verdade que os jovens não se interessam pela política, eles continuam a ter um grande interesse, só não se revêem na forma como essa política tem sido feita pelos partidos."

Temos de pensar que, quando nasceram, a força dos partidos nos sistemas políticos das democracias liberais tem sido sobretudo ultrapassar os constrangimentos que existiam a nível da sociedade para integrar as pessoas que não tinham recursos e capacidades para se interessarem e participarem na vida política. E agora, os partidos políticos fazem o contrário, ou seja, afastam estas pessoas: em vez de terem um papel no aumento da participação ou da educação cívica, do debate, afastam esses princípios no seu próprio funcionamento e na maneira como têm gerido as principais situações. E, portanto, têm vindo a afastar cada vez mais as faixas, como disse, que têm mais dificuldade e que estão mais desiludidas na maneira como funciona o sistema político. Então, não é de espantar que, se nós olharmos não só para a nossa classe dirigente do ponto de vista dos deputados, mas também da própria elite partidária, encontremos uma elite da elite - pessoas que têm recursos socioeconómicos muito elevados, que vivem exclusivamente no meio urbano, pessoas de meia idade ou de idade avançada.

Portanto, há toda uma série de indicadores que fazem com que os partidos tenham deixado há várias décadas de ser representativos da sociedade. Aqui, há claramente um legado negativo dos partidos, no sentido de afastar cada vez mais os eleitores, e isso reflete-se na taxa de abstenção e na rejeição de participar nos canais tradicionais da representação política.m


Podia aprofundar melhor sobre o processo de elitização dos partidos? Como os partidos acabam por ser capturados por interesses particulares em Portugal?


Não me estou a referir à captura no sentido de haver grupos de interesse, ou grupos económicos que controlam as orientações dos partidos. A nível das políticas é outro discurso, mais amplo, que ultrapassa a questão dos partidos que mencionei anteriormente. É a capacidade de determinados grupos que têm mais recursos económicos, mas também em termos simbólicos e numéricos, do ponto de vista das bases (os sindicatos), de influenciar as políticas do governo. Isso é um processo mais difícil de alcançar, e é mais transversal e comum à experiência das democracias “avançadas”. Nós temos esses processos de gerência dos interesses privados e dos interesses públicos em todos os países: na Alemanha, e aqui basta pensar no poder da indústria automóvel nas decisões que o governo toma; na Inglaterra, na França, por exemplo, os grupos empresários do estado que representam determinadas áreas e setores são fortíssimos nas decisões tomadas por qualquer governo - seja de esquerda, seja de direita. Aí é outro problema, que existe, mas é algo diferente.

O que eu me estava a referir quando falava da questão do caráter elitista dos partidos é que estes não têm tido a capacidade para se renovar e para acompanhar os processos de mudança na sociedade, e estabelecer um diálogo e uma relação aberta com as forças da sociedade. Não só a nível de indivíduos, isto é, de aceitar e estimular os contributos dos indivíduos, sobretudo aqueles que se sentem mais afastados e alienados do sistema político, mas também dos grupos e associações que existem na sociedade civil, que representam determinados setores, e que não têm interlocutores quando procuram dialogar e manifestar as suas preocupações, interesses e preferências - têm dificuldade em encontrar nos partidos alguém que saiba ouvir e que possa partilhar e dar forma e visibilidade institucional a determinadas preocupações. Isto tem acontecido em casos pontuais, mas há aquele fenómeno que, em parte, Portugal pode ser um exemplo, chamado cartelização dos partidos. O que é que isso significa? Significa que os principais partidos ocupam posições de poder, muitas vezes nomeando os seus dirigentes nas principais posições e instituições públicas, ou agências estatais, ou outros cargos dirigentes importantes e, portanto, têm conquistado essas posições ao controlar o tipo de políticas e evitando que haja pessoas de fora dos partidos que possam gerir de forma diferente os recursos públicos.

A questão do fechamento dos partidos e a ideia de cartelização, prejudica, também, a qualidade das reformas políticas, pois, como disse, afasta os que mais merecem. A escolha dos dirigentes é baseada nos que são mais leais, não com base no método da lógica meritocrática, e são mais sensíveis ao diálogo e a pontos de vista diferentes. Se compararmos o governo com uma organização, vemos que uma organização, para inovar e se manter competitiva no ponto de vista da área onde atua, não pode escolher os seus dirigentes apenas por aqueles que dizem “isto está tudo bem, não é preciso mudar nada porque nós estamos a fazer tudo bem”, uma vez que arriscam que não se perceba o que se está a fazer mal e o que se deve fazer para evitar que haja uma queda e uma crise repentina.

Isto tem acontecido em muitos países europeus, onde o sistema político tem implodido, quase de um dia para o outro, por causa da classe política ter sido cega, fechada e completamente desligada do resto da sociedade. Por exemplo, aconteceu no caso da Itália, que conheço bem, mas também podemos dizer no caso da Grécia - o PASOK tem gerido o país durante décadas e décadas - ou outros países, também no contexto da Europa Ocidental.


"Isto tem acontecido em muitos países europeus, onde o sistema político tem implodido, quase de um dia para o outro, por causa da classe política ter sido cega, fechada e completamente desligada do resto da sociedade."

Portanto, o governo, como organização/empresa, tem de ter capacidade para integrar estas vozes da sociedade, sobretudo, como disse, aqueles que têm produzido mais pensamento crítico e que têm mais conhecimento sobre determinados assuntos, independentemente de ser alinhado ou não com aquelas posições. O que tem acontecido em Portugal é um processo que tem vindo a ser gradual, ao longo das últimas décadas, e, no fundo, o caso do Chega é uma consequência destas dinâmicas e desta incapacidade dos partidos atuarem de uma forma diferente, quer do ponto de vista interno, quer do ponto de vista da sua atuação na gestão do governo.


Há pouco falou da implosão dos sistemas políticos de vários países, nomeadamente da Grécia. Uma marca comum dos vários sistemas políticos que implodiram foi a neoliberalização dos partidos do Centro-Esquerda que marcavam a alternativa ao Centro-Direita - o PASOK, o Partido Socialista Francês, o Partido Democrático na Itália. Considera que o PS segue o mesmo rumo de neoliberalização? É possível que isto contribua para um desgaste diante deste afunilamento programático dos governos, com constrangimentos na política económica e social?


O caso da implosão dos países que mencionei, sobretudo em relação aos partidos de Centro-Esquerda - sociais-democratas ou socialistas, que implodiram nos últimos anos - deve-se sobretudo ao facto de estarem no poder quando se deu a crise económica. O fator principal e a grande “sorte”, digamos, do Partido Socialista, foi a de sair no momento em que havia, de facto uma grande crise: havia a Troika e era preciso tomar medidas duras no sentido neoliberal ou ultra-neoliberal e que, portanto, foram implementadas no governo de direita. Isso, obviamente, acabou por beneficiar o Partido Socialista em relação ao que aconteceu noutros casos. Como disse aqui, a crise foi gerida principalmente pelos partidos de esquerda, o que levou a uma implosão das forças políticas repentinamente.

Agora, há uma questão mais geral, ou seja, a questão da neoliberalização dos partidos de esquerda social-democratas, que pode levar a uma crise dos partidos. A minha resposta à pergunta é sim, no sentido em que isto é um processo de longo prazo. Os partidos de Centro-Esquerda moderada na Europa já começaram este tipo de processo de cada vez mais serem partidos centristas e moderados comparativamente com a Terceira Via de Tony Blair, acompanhados por outros países. Portanto, houve um benefício de curto prazo: nos anos noventa, a grande maioria dos países europeus eram governados por governos de Esquerda ou Centro-Esquerda e em 1999 foi o apogeu do alcance da Terceira Via. Isso foi, como disse, um benefício de curto-prazo que depois levou no médio e longo prazo ao declínio progressivo desses partidos.

Portanto, mesmo no caso dos partidos de esquerda moderada que sobreviveram à crise económica, esta ainda assim foi determinante para a implosão, como se pode constatar pelo caso da Grécia e da França ou outros países. Mas mesmo onde isso não afetou definitivamente o desempenho e a sobrevivência dos partidos de esquerda, o declínio continuou e, hoje, o caso do Partido Socialista é raro. É um estudo de caso único na Europa, por ser um partido que continua a ter níveis de popularidade, pelo menos até há pouco tempo, muito elevados, na ordem dos 35-45%. Hoje em dia, já é impossível, mesmo nos países da Escandinávia, que tradicionalmente têm partidos de esquerda moderada historicamente muito fortes, com esse tipo de apoio difuso, alcançar estes níveis, já para não falar do caso de países como a Itália ou a Espanha. Eu julgo que, como disse, dificilmente isso voltará a ser o que era, no sentido em que esta família partidária poderá ter níveis de apoio como tiveram nos anos 1990s. Eu acho que este foi o apogeu e, a partir daí, por causa desta crescente indistinção - não só a questão das políticas neoliberais, porque acho que existem outros problemas - entre os partidos de Centro-Esquerda e os partidos de Centro-Direita, isso levou ao declínio destes partidos, que têm vindo a descer e a perder ou para novos partidos de Esquerda, ou para os partidos de Direita. E o resultado é que, hoje em dia, é cada vez mais difícil encontrar soluções maioritárias de um só partido como temos agora em Portugal, e a maioria dos países tem de recorrer a coligações para ter uma maior criatividade nas soluções de governo que têm de encontrar.


"[...] hoje, o caso do Partido Socialista é raro. É um estudo de caso único na Europa, por ser um partido que continua a ter níveis de popularidade, pelo menos até há pouco tempo, muito elevados, na ordem dos 35-45%. "

Há, também, uma questão que vale a pena sublinhar. Como estava a dizer, as políticas neoliberais são sem dúvida uma das questões principais, mas há outros fatores. E o fator fundamental é que o contexto socioeconómico não tem favorecido a gestão dos recursos do governo no poder por parte desses partidos. Ou seja, o facto de nós vivermos basicamente numa crise económica permanente desde o início do século até hoje. A Europa não tem crescido, tem perdido cada vez mais em relação a outras áreas do mundo, e este é um discurso diferente, mais complexo, mas o que está a acontecer é um empobrecimento da Europa e, com menos recursos, os partidos de esquerda dificilmente podem permanecer fiéis às suas próprias ideologias e aos seus próprios princípios, no sentido de redistribuir cada vez mais os recursos, se no fundo o bolo permanece igual.

No caso de haver recursos, num crescimento económico sustentado de vários anos, onde a Europa começa a produzir mais riqueza e se afirma em relação a outros mercados de outros países emergentes. Isso obviamente torna mais fácil a tarefa dos partidos de esquerda de manter os princípios históricos tradicionais da sociedade dessa democracia e, ao mesmo tempo, produzir resultados positivos do ponto de vista do desempenho económico. Por isso, infelizmente, nos últimos 20 anos, isto tem sido muito desfavorável, sobretudo no contexto da Europa do Sul - mas não só, pois é uma questão que envolve o continente inteiro, exceto o caso dos países da Europa do Leste que têm um legado histórico tradicional do passado comunista. Mas nos países do Sul da Europa Ocidental tornou-se basicamente impossível manter-se fiel devido à falta de recursos suficientes para serem redistribuídos. Por isso é que o governo socialista, hoje em dia, tem este benefício e muito dinheiro para poder atuar no sentido ainda social-democrático, mas ainda vamos ver o que conseguem fazer com estes recursos, por enquanto. Eu sou um pouco cético acerca da capacidade de utilização eficiente desses recursos, mas espero estar enganado.


Porque é que considera que há um problema na gestão de recursos na execução do PRR? Pode explorar mais esse ponto?


Há, aqui, uma questão problemática, não só do ponto de vista conjuntural - eu depois posso falar também deste governo - mas antes, eu acho que convém lembrar uma questão mais geral que é: em Portugal tem sido mais difícil fazer reformas estruturais, ou seja, as reformas necessárias, sobretudo as mais acertadas. Isto acontece por várias razões: em parte por causa da capacidade política; por outro lado, devido a cálculos eleitoralistas de curto-prazo; outros por maus dirigentes que têm tido papéis relevantes no governo e nos partidos, como disse, por causa do mau processo de recrutamento interno.

Mas, de facto, temos que, hoje, por exemplo, fala-se muito - isto podia dar a outros exemplos - do problema demográfico. Portugal é dos países em que é mais evidente o problema demográfico, que é um problema estrutural e transversal da sociedade, e que afeta a questão da Segurança Social, do emprego, da educação, do sistema de saúde. Há cada vez mais idosos e cada vez menos jovens ativos no país e, assim, a gestão da Presidência torna-se muito difícil de gerir com poucos recursos. Ao olharmos, por exemplo, para o caso francês, temos uma pirâmide demográfica completamente invertida comparativamente ao caso português: nós temos um quarto da população, ou mais, de mais novos, ou seja, nos últimos 20 anos, o aumento significativo dos mais novos em detrimento da proporção dos mais idosos, que representam uma fatia cada vez menor da população. E é por isso que, no caso da França, as políticas de Segurança Social são mais sustentáveis. Falou-se agora do problema em França do aumento da idade da reforma, mas estamos a falar de um aumento de 62 para 64 anos. Como é possível que a idade média da reforma seja 64 anos? Exatamente porque muitos jovens podem sustentar reformas mais cedo e mais generosas. Isto tem sido o resultado de políticas para a família que já vêm de há mais de 20 anos e que foram consensuais entre a Esquerda e a Direita. Houve várias maiorias na França e os novos governos não desfizeram o que foi feito anteriormente, pelo contrário, aprofundaram ainda mais as políticas que sabiam que caminhavam no bom sentido.

Isto começou em França com políticas que eram abrangentes do ponto de vista da Segurança Social, do emprego, da habitação, para que os jovens pudessem ter um futuro, esperança, uma família, filhos, entre outros. E, como disse, agora vemos os frutos, porque temos uma das populações com a idade média mais baixa a nível europeu e com grandes capacidades de sustentar o Estado Social, ao contrário do que acontece em Itália ou em Portugal, que são países com cada vez mais idosos e cada vez menos jovens. Se não fossem os imigrantes com idades mais baixas, o saldo seria ainda pior e isso, depois, tem reflexos negativos numa série de áreas.

Portanto, o problema em Portugal tem sido, sobretudo, não pensar estrategicamente, em especial quando havia muitos recursos nos anos 90, em que havia capacidade de gerir e de planear de maneira diferente o futuro. Ou seja, não foram feitas escolhas que, hoje em dia, têm um custo muito alto e que são muito difíceis de alterar, pois talvez já seja demasiado tarde. Por exemplo, a questão do investimento na ferrovia e nos comboios já devia ter acontecido há 20 anos. Não é uma questão de utilizar agora os fundos europeus para investir na ferrovia. Bastava olhar para o que os outros países estavam a fazer - a Alemanha, a Espanha - que estão a investir na ferrovia porque já sabiam no início do século que era fundamental, por exemplo, a nível da coesão territorial. Hoje fala-se muito da questão do abandono do interior mas, se não existem meios de transporte que permitam eventualmente ter um emprego em Lisboa, mas morar em Portalegre, e fazendo a viagem em poucas horas e não num dia inteiro, como acontece em muitos outros países europeus. A cada vez maior concentração em Lisboa não é em si problemática, desde que haja condições de transporte que permitam às pessoas deslocar-se de maneira fácil. E isso acontece em zonas mais urbanizadas noutros países, como em França e na Alemanha, entre outros.


"[...]não foram feitas escolhas que, hoje em dia, têm um custo muito alto e que são muito difíceis de alterar, pois talvez já seja demasiado tarde. Por exemplo, a questão do investimento na ferrovia e nos comboios já devia ter acontecido há 20 anos."

Portanto, há toda uma série de escolhas no planeamento que foram feitas, quer a nível de infraestruturas, quer a nível da educação - que eu conheço porque trabalho nesta área e consigo falar do que não foi feito e devia ter sido feito na educação - e nas políticas do Estado Social. Há aqui um conjunto de setores que infelizmente têm sido mal geridos, e o problema não é tanto de lidar com este dinheiro [PRR] e fazer o máximo possível. Já seria bom se se conseguisse fazer alguma coisa, mas duvido porque há muitas coisas que não podem ser feitas no curto prazo. Os sinais que estão a emergir ainda são difíceis de avaliar, mas não são muito animadores.


Existem certas leituras que apontam para uma característica geral dos países na periferia dos centros económicos como a França e a Alemanha, que indicam que o capitalismo na periferia é dependente, e isso gera uma má gestão de recursos ou uma acumulação de poder e de riqueza. Poderá o problema de Portugal estar relacionado com um programa de desenvolvimento dependente, que segue os interesses das elites políticas e económicas?


O facto de ser uma economia periférica não faz, necessariamente, esse capitalismo dependente de interesses externos. Há outros países periféricos que têm conseguido beneficiar-se, sobretudo, através de escolhas estratégicas e incentivos. Nós temos um país, como a Irlanda, por exemplo, que tem sido sempre um país periférico, mas que também tem conseguido criar multinacionais através de incentivos, e que tem conseguido apostar nas tecnologias e no conhecimento tecnológico digital para atrair capitais, interesses e tornar-se, de facto, um dos principais centros desta nova economia - sobretudo a economia virtual e das grandes multinacionais big tech, que têm vantagens económicas. Estas são escolhas estratégicas do governo, como aconteceu no caso da Holanda, que tem uma política fiscal financeira favorável para grandes interesses e, portanto, é normal que estes olhem para esses incentivos de uma forma positiva e, portanto, tenham interesse em realizar os seus negócios nesses países.

Aqui, o que houve foi uma falta de estratégia. Isto é, uma estratégia de industrialização, para otimizar os setores que tinham mais potencial, como por exemplo, a área da educação. Isso podia ter sido feito, mas não é uma questão de um dia para o outro - tem de haver uma estratégia partilhada e consensual. As elites políticas, através das políticas públicas, dão sinais às empresas e às forças capitalistas em geral, para desenvolver determinados mercados e determinadas mecânicas. Aqui, há um problema em Portugal, que é o facto de as grandes empresas serem muito dependentes do Estado e do favor dos partidos. Isto sim, é uma especificidade portuguesa, que não tem tanto a ver com a economia ser periférica, porque isso aconteceu também em Itália, que tem sido uma economia que já cresceu durante muitas décadas a ritmos muito elevados, mas que tinha esse problema de um capitalismo muito dependente da política e dos apoios que conseguia ter a nível do Estado e dos investimentos do Estado.

Portanto, isto não tem a ver com a periferia da economia, mas é um problema que temos, em menos medida, noutros países, e que tem claramente prejudicado a capacidade de dinamizar mercados e atrair novas forças económicas.


Para terminar, quais são as reformas necessárias no âmbito político para renovar o sistema político português e evitar uma implosão do sistema partidário, e para uma renovação da democracia?


Eu diria que, a nível do sistema político, é difícil, porque não consigo fazer agora uma análise demasiado excessiva de reformas [ri-se]. Já falei bastante dos partidos mas acho que, de facto, a maneira como funcionam… O problema é que não é uma reforma que se possa implementar. Os partidos não mudam do ponto de vista externo, portanto, eu diria “os partidos”, mas o problema é que eu sei que estes têm uma grande inércia e que é difícil mudá-los internamente, a não ser, como disse, que haja um choque externo. Eu diria que seria importante dar mais voz à sociedade, no sentido de criar canais institucionais para poder incentivar mais a participação - sobretudo dos jovens e das associações da sociedade civil - fora dos canais de representação eleitorais. Por exemplo, experimentar a Assembleia dos Cidadãos, que é uma tendência recente que se tem verificado em vários países europeus, onde se juntam vários cidadãos para discutir várias questões. Houve uma tentativa aqui em Lisboa e, julgo, no Porto.

Eu acho que isto devia ser olhado de forma positiva e, eventualmente, ser replicado a nível nacional, e instaurar esse mecanismo entre as eleições, de forma permanente, porque as eleições têm mecanismos e constrangimentos institucionais que tornam muito difícil trazer esse tipo de mudança. Portanto, esta pode ser uma boa maneira de ultrapassar esta barreira.


Muito obrigada pela sua participação. A revista A Salto agradece imenso por esta entrevista tão interessante e enriquecedora.




 

Sobre o entrevistado:


Marco Lisi, doutorado em Ciência Política pela Università degli Studi di Firenze, é professor na Universidade Nova de Lisboa, lecionando na área da Ciência Política. Desenvolveu uma extensa pesquisa sobre a política portuguesa e sobre partidos políticos.

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