Quando falamos de educação num mundo em mudança, acho que será importante compreender como a mudança afeta a educação, mas também como a segunda está a (e pode) responder a essa mudança. Em primeiro lugar será, então, importante situarmo-nos no contexto atual de mudança: desde a catástrofe climática à pandemia, passando pela instabilidade económica que vivenciamos desde a crise financeira de 2008 - exacerbada pelas já referidas pandemia e catástrofe climática a curto/médio prazo - e simultaneamente a contínua luta por direitos civis e maior igualdade de várias minorias. Neste contexto de instabilidade, surgem várias questões e críticas aos sistemas atuais de poder e diferentes perspectivas sobre como estes têm de evoluir para responder aos problemas já referidos.
A educação surge desta forma como uma parte destes sistemas, já que a sua simples disponibilização (ou não) e a quem, representa um fator de discriminação no acesso à informação, conhecimentos e competências (Baixinho, 2017).
Nesta única vertente da educação é possível perspectivar uma variedade de diferentes posições, desde a disponibilização da educação a todos da forma o mais igualitária possível ou apenas a quem a pode pagar, a disponibilizar educação apenas àqueles que demonstram maior aptidão, etc. Estes diferentes fatores de discriminação/seleção podem surgir em qualquer momento da educação - por exemplo, a educação básica é disponibilizada de forma igualitária e a educação secundária em função da aptidão demonstrada. Sendo que qualquer uma destas aplicações poderia ser realizável, surge a questão de qual a mais adequada, resposta que depende significativamente da ideologia das forças de decisão sobre a educação. Ou seja, em Portugal, o Estado (dentro do governo, o Ministério da Educação), o parlamento, e em parceria com estas, estruturas supranacionais como a União Europeia e a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico).
A descrição da realidade Portuguesa pode ser feita em função de duas ideologias específicas, 1) A democratização (descentralização), que procura empoderar cada localidade e escola, 2) A burocratização (centralização), que reflete um maior controlo por parte do Estado através das direcções regionais. O resultado foi um sistema que começou a dar passos na direção da primeira ideologia, até mudar de direção para a alta burocratização da educação básica e secundária que observamos atualmente. Criou-se assim um sistema em que o Estado continua a guardar para si as competências de definição do currículo e o poder de avaliar e intervir nas escolas em função dessas avaliações, em parceria com a criação de um sistema de agrupamentos escolares que retirou ainda mais autonomia às escolas individuais e afunilou a hierarquia (apenas uma direção por agrupamento) (Lima, & Torres, 2020) (Baixinho, 2017) (Torres, 2011).
Outra clara demonstração de um sistema em conflito está na implementação de uma “nova gestão pública", que procura a mutação das instituições públicas seguindo o modelo da “gestão privada” - partindo da ideia de que a gestão privada é homogénea e admitindo que esta forma de gestão organizacional é a mais racional, ou seja científica e empiricamente orientada, e por isso a correta a para qualquer contexto, seja este público ou privado. Esta forma de gestão procura então o aumento da eficácia e eficiência com o objetivo de maximizar resultados. No contexto do ensino básico e secundário isto pode ser verificado em várias situações, sendo a mais clara a privatização em lato sensu como descrita por Lima, Licínio C. (2018), que resulta numa reorganização da cultura das escolas e não numa simples importação de métodos de gestão mais eficientes. É assim criado um ambiente escolar que se foca especialmente em resultados e na sua realização da forma mais eficiente, especificamente verificados na significativa valorização dos testes, tanto internos às escolas como externos (provas de aferição, exames nacionais), ou seja, uma hipervalorização de resultados mensuráveis. Outro exemplo relacionado é o dos rankings das escolas, que se afirmam como um método de accountability das diferentes escolas em relação aos seus clientes (encarregados de educação e alunos), permitindo aos mesmos uma escolha informada (Afonso, 2013), (Afonso, 2009).
Este foco único surge então como alteração ideológica na forma como perspectivamos a educação, colocando em causa a questão que considero mais importante ser colocada sobre a educação em Portugal neste momento: Quais os seus objetivos? Esperamos da educação uma simples transferência de conhecimentos e técnicas, ou um desenvolvimento do pensamento crítico, um desenvolvimento de competências sociais e emocionais, ou uma mistura destes? Sendo a educação um processo complexo, não é de esperar da mesma um objetivo único, mas é mesmo assim expectável que os seus objetivos sejam congruentes com as da cultura e sociedade em que se integra. O contexto português é o de uma sociedade democrática, pelo que será importante que esta, bem como os seus valores, esteja representada na educação portuguesa.
«Esperamos da educação uma simples transferência de conhecimentos e técnicas, ou um desenvolvimento do pensamento crítico, um desenvolvimento de competências sociais e emocionais [...] ?»
Questiono também até que ponto o sistema atual serve os seus “clientes”; para isso realço os dados recolhidos pelo HBSC em Portugal no ano de 2018 (Gaspar de Matos & Aventura Social Team, 2018) no qual alunos de 8º e de 10º ano apresentam como as 3 principais dificuldades com a escola, demasiada matéria ( 87,2%), matéria aborrecida (84,9%) e matéria muito difícil (82%), sendo as aulas a segunda coisa que menos gostam na escola (35,3%). O modelo atual de escola e de educação parece ter dificuldades em motivar e interessar os alunos na matéria ou até mesmo em lhes dar tempo para a compreender (Matos, et. al, 2017). Desta forma a educação atual parece existir principalmente (se não unicamente) para a criação de capital humano, ou seja, para a preparação de futuros trabalhadores capazes de produzir valor económico (Baixinho, 2017). Não pretendo com isto dizer que estes objetivos não têm interesse na sociedade portuguesa atual, mas sim que esta me parece uma simplificação do papel das escolas e universidades na vida dos alunos. De facto, estas afiguram-se muitas vezes como o primeiro local de socialização (que não a família), onde os alunos passam uma parte significativa do seu dia em contextos formais e informais. Mesmo os momentos mais formais (como as aulas) apresentam as suas especificidades informais, pelo simples facto de o conhecimento não poder ser simplesmente transferido da mente do professor para o aluno, mas ter de ser comunicado de forma a que mesmo o possa assimilar de uma forma congruente com os seus conhecimentos e constructos prévios. Parece-me então contraproducente ignorar a parte inerentemente social da criação de conhecimento e tentar transformar o ambiente educativo num de eficiência produtiva.
Com isto não pretendo dizer que um sistema educativo não deve seguir qualquer modelo de accountability; pelo contrário, estes modelos revelam-se uma parte crucial de qualquer processo democrático, visto que permitem a avaliação, a prestação de contas e a responsabilização da comunidade democrática e dos seus intervenientes (Afonso, 2013). No entanto, estes devem ser construídos com base numa perspetiva mais ampla e não unicamente dependente em variáveis mensuráveis e unidimensionais (testes) (Afonso, 2009).
Como conclusão, gostaria de reiterar a pergunta: Que objetivos esperamos da educação? Considero que as alterações no sistema educacional já referidas aconteceram sem uma discussão real na nossa sociedade sobre o rumo a tomar na educação e os valores a defender. Devemos começar um verdadeiro processo de democratização e maior autonomia escolar ou apenas fazer alguns ajustes ao sistema atual? A escola deve focar-se em valores de excelência académica e de competição individual, ou em valores de igualdade e comunidade? Em último lugar, o que esperamos de alguém que termina um processo de educação formal, tanto no ensino secundário como na Universidade, e que responsabilidade têm as instituições de educação no desenvolvimento dessa pessoa?
Referências bibliográficas:
Afonso, A. J. (2009). Nem tudo o que conta em educação é mensurável ou comparável. Crítica à accountability baseada em testes estandardizados e rankings escolares. Revista Lusófona de educação, (13), 13-29.
Afonso, A. J. (2013). The emergence of accountability in the Portuguese education system.European Journal of Curriculum Studies, Vol. 1, No. 2, 125-132
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Baixinho, A. F. (2017). Políticas educativas em Portugal: governação, contexto local e hibridismo. EccoS–Revista Científica, (42), 105-124.
Gaspar de Matos, M. & Aventura Social Team (2018). A saúde dos adolescentes portugueses após a recessão - Dados nacionais do estudo HBSC 2018 [Health in Portuguese adolescents after economic recession: National data from HBSC study 2018].
Lima, L. C., & Torres, L. L. (2020). Políticas, dinâmicas e perfis dos agrupamentos de escolas em Portugal. Análise Social, 55(4 (237), 748-774.
Lima, Licínio C. (2018). Privatização lato sensu e impregnação empresarial na gestão da educação pública. Currículo Sem Fronteiras, v. 18, n. 1, 129-144.
Matos, M. G. D., Camacho, I., Reis, M., Tomé, G., Branquinho, C., & Ramiro, L. (2017). Is truth in the eyes of the beholder? Or are Portuguese schools, as viewed by Portuguese pupils, mismatching with what the educational system offers?. Vulnerable Children and Youth Studies, 1-11.
Torres, L. L. (2011). Liderança singular na escola democrática: ameaças e contradições.
Torres, L. L. (2019). A celebração da excelência na escola pública. Reforço ou entrave à democratização da educação?. Revista Diversidades, Vol. 54, 26-29.
Sobre o autor:
Filipe Lapa Duarte. Estudante do 5º ano do mestrado integrado de Psicologia das Organizações, Social e do Trabalho pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, membro do podcast The Rambling Book.
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