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Leonardo Gomes Bortolini

Cidadania como Ferramenta de Manutenção Nacional : Perspectivas de um Longínquo Século XXI

Ao se deparar com o termo “cidadania”, muitas vezes é difícil definir exatamente o significado de tal palavra que, em aspectos políticos e sociais, possui tamanha força no debate público. Não obstante, é a partir desta inquietação e, mais precisamente, de uma propaganda eleitoral, que me vim a questionar sobre a cidadania e seus modos de utilização para com a sociedade.

Para começar o artigo, gostaria de analisar uma frase observada em uma propaganda eleitoral portuguesa em 2021. A propaganda eleitoral em si trazia como “slogan” a frase “Mais Cidadania, Melhor Democracia”. Uma primeira análise da mesma acabou gerando certos questionamentos internos quanto à sua empregabilidade na realidade política. É fato que Portugal se encontra como uma das principais democracias do mundo, como visto por exemplo no “Global Democracy Index” da revista “The Economist” de 2020 (The Economist, 2021). Deste modo, se seguirmos o raciocínio do “slogan”, quanto mais cidadania houver, melhor os mecanismos democráticos irão atuar dentro do Estado. A dúvida, entretanto, transformou-se em duas: a primeira sendo qual a cidadania intencionada na campanha e a segunda se realmente esse paralelo expressado é verídico ou analisável.

Vale ressaltar que a utilização do “slogan” não é uma crítica ao partido do qual o mesmo foi retirado, muito menos uma análise das políticas do mesmo. O “slogan” serviu como inspiração para as perguntas e questionamentos ressaltados neste artigo por mim. No fim, é apenas uma frase. O interessante é colocar esta frase na ótica das relações internacionais, da história e da ciência política, extraindo, desta forma, pensamentos que antes não estavam tão aparentes.

Seguindo a primeira questão, saber qual cidadania está sendo expressa é importante. Já se foram os tempos em que havia apenas um tipo de cidadania. Dentro deste escopo, ou seja, da cidadania como a concessão legal do Estado ao indivíduo de um “status”, de uma formalização dos seus direitos, há diversos tipos de direitos. Podemos citar assim a cidadania política, social, econômica, sexual, cultural, ecológica, cosmopolita, entre diversos outros tipos (Isin e Turner, 2002). Entretanto, além de uma série de direitos, dentro do debate político há a caracterização da cidadania como uma série de deveres que aos cidadãos possuem, ligados ao Estado em que estão inseridos - por tal, devem fazer certas atividades em prol da comunidade e do Estado, prezando pelo bem-estar e funcionamento orgânico da sociedade (Heater, 1999).

A utilização deste conjunto, dos direitos e dos deveres, não necessariamente é empregada ou desejada pelos Estados como a melhor maneira de atuação política. Ou seja, em diversas situações é mais vantajoso incentivar os deveres dos cidadãos do que a manutenção ou expansão dos direitos. Buscando uma perspectiva histórica, é obvia a utilização do espírito nacional, de pertencimento, de cidadão, pelos Estados para se criar e consolidar o modelo de Estado Nação presente até hoje. A ideia de tornar uma população em seus cidadãos, de promover o espírito da nação como amálgama legitimadora do Estado, foi utilizada durante o século XIX pelos Estados europeus e posteriormente pelos diversos outros Estados independentes ou recém independentes do século XX (Miller, 1995). Entre os Estados do século XIX, nós possuímos dois exemplos interessantes: a França e a Alemanha.

"A ideia de tornar uma população em seus cidadãos, de promover o espírito da nação como amálgama legitimadora do Estado, foi utilizada durante o século XIX pelos Estados [...]."

O exemplo francês é importante visto a sua metodologia de análise quanto ao “O que é uma nação?”. Sieyes irá dizer que a nação é “um corpo de associados vivendo sobre leis comuns e representados pela mesma assembleia legislativa...” (Heater, 1999. 106). Sendo assim, deixando de lado uma mesma língua, mesma tradição ou etnia, focando apenas no caráter legal de governança daquele grupo de indivíduos. O que fica então caracterizado como cidadania jus soli, a “cidadania de solo”, é aquela em que o individuo ganha a cidadania pelo local onde nasce, independentemente do contexto anterior; Se é imigrante, de territórios além-mar ou de outra crença, ao nascer na França, você é um francês pleno. Em contraste com o modelo francês, o modelo alemão de cidadania defende a existência de um “povo”, de uma essência similar que liga um conjunto de indivíduos, baseada na sua tradição, língua e ambiente similar, que existiram por centenas de anos. Assim, a cidadania jus sanguinis, a cidadania de sangue, se baseia em um caráter muito mais tradicional e de identificação, tendo que estar ligado à cultura e “sangue” daquela nação. A sua ancestralidade é um fator importante, podendo moldar o quão cidadão você é ou pode ser (Heater, 1999. 106-109). Foi neste contexto que o Estado fez uso da fomentação do espírito nacional para formar a Alemanha em 1871. O dever do cidadão em defender a pátria e os interesses nacionais são alavancados como ferramenta para solidificar a posição Estatal.

O processo de garantir direitos aos seus cidadãos é uma maneira de legitimar o Estado como representante da nação, além de conseguir consolidar a comunidade como defensora dos interesses nacionais e Estatais, visto que, sem o mesmo, a sociedade em questão não possui seus direitos agora garantidos. O direito ao voto e à participação política, a liberdade de expressão, a liberdade religiosa, sexual e econômica são questões garantidas pelo Estado para que este possua a participação social necessária em seu processo de legitimação. A garantia desses direitos traz mais deveres, estes sendo reconhecidos como necessários, saudáveis e legítimos dento da proteção, atuação e existência do Estado nação (Bellamy, 2008).

Voltando então ao “slogan” atribuído no início do artigo: Mais Cidadania, Melhor Democracia. Ao pensarmos no mesmo em ambas as perspectivas salientadas acima, a jus soli e jus sanguinis, podemos obter duas análises diferentes. Com base no jus soli, podemos ver a ideia de expansão da cidadania como atitude política para diversos membros da sociedade que não desfrutam ainda de uma cidadania plena em território português; ou seja, aumentar o nível de cidadãos com base na sua chegada a Portugal. Esta ideia é um tanto interessante se considerarmos a onda migratória ainda existente na Europa. Já na visão jus sanguinis, o raciocínio que podemos retirar não é o de uma expansão da cidadania como possível direito legal em si, mas sim um fortalecimento do dever como cidadão em se engajar nas políticas do país. Ou seja, é mais interessante para o Estado fortalecer o dever da população já existente do que expandir os direitos para uma nova leva de cidadãos, visto o custo político da mesma. Ambas estas visões são análises apenas do conceito de cidadania em si, mostrando, desta forma, a complexidade do termo como ferramenta política. Definir qual é a perspectiva correta é, no mínimo, tomar uma posição para onde a análise deve continuar. Para tal não ser uma decisão arbitrária dentro deste documento, decidi adotar a própria legalidade portuguesa como condicionador da decisão. Desde 1981, o jus sanguinis é o princípio base da cidadania portuguesa, ainda que com elementos do jus soli presentes (Mesquita, 2019. O Observador).

Deste modo, a análise antes feita sobre as possíveis interpretações do “slogan” traz consigo um caráter de fortalecimento do sentimento nacional e participativo nas questões políticas, mais do que uma expansão ampla de quem é cidadão. Obviamente a ideia de expandir o número de cidadãos é algo complicado no cenário político de qualquer Estado Nação existente, isso se não contarmos com uma crise migratória e de refugiados, questão esta que atinge a Europa e se afigura como um fator amplificador das dificuldades e problemas políticos desta questão a níveis inimagináveis. Assim sendo, ao empregar o slogan, a ideia transmitida é a de aumentar a participação do cidadão no nível político, social e cotidiano do Estado Nação, ampliando, desta maneira, os deveres empregados na sociedade, atraindo e fomentando uma maior conscientização do que ocorre na sua região. Vista esta questão, agora podemos começar a pensar se essa maior participação da sociedade na atividade cidadã é intrinsecamente ligada a uma melhora na democracia. Para tal, podemos começar analisando o que esse aumento dos deveres e da participação cidadã causam e como ele é ampliado pelo Estado.

Para ampliar alguma coisa, necessariamente esse algo já existia antes. Ampliar a cidadania cívica de uma sociedade corresponde a dizer que havia uma parcela que já exercia os seus deveres de maneira autônoma. Digo autônoma, pois é possível exercer os seus deveres de maneira coercitiva pelo Estado, como por exemplo pagar impostos. O cidadão que não pagar seus impostos pode sofrer o uso da força pelo Estado para o fazer, ou sofrer as consequências dentro do modelo legal de tal Estado. Deste modo, uma participação da cidadania cívica é baseada na autonomia do cidadão em querer fazer parte da sociedade na qual vive, devendo haver um desejo em ajudar este corpo social, a qual ele faz parte, a melhorar em diversos setores, seja econômico, social, ambiental ou político.

A tarefa de gerar este sentimento, de querer participar de maneira autônoma, é algo difícil principalmente para Estados jovens ou aglomerados de maneira brusca (por exemplo, os diversos Estados no continente africano que, além de serem jovens, não possuem um mito de criação nacional coeso para os diversos povos aglomerados dentro de uma certa fronteira). Se buscarmos o processo de criação nacional de diversos Estados europeus, a ideia de um povo comum, habitante de uma determinada região, com certos costumes e tradições, com uma história compartilhada, a mesma língua, entre outros aspectos, essas ideias são muito mais fáceis de se moldar ao conceito de cidadania e de pertencimento que aquele Estado Nação necessita (Őzkirimli, 2010). Não é, pois, um processo rápido. Essa criação demanda tempo e uma política estatal voltada a construir essa nação em si. Basicamente, o que vivemos hoje são os frutos de mais de um século de construção do “nacional” dentro da característica do regime de governança atual, principalmente para os Estados que começaram esse processo antes.

O ato de convencer uma pessoa que ela faz parte de um grupo sociocultural, que ela pertence a esse grupo, pode se chamar nacionalismo, mas um nacionalismo mais primitivo e introspectivo - aquele que é o começo do pensar sobre o que é nação, povo e Estado. Esta parte fundamental, do indivíduo se entender como membro de grupo nacional e de querer exercer seu papel de cidadão, é a ferramenta, então, utilizada para se aprimorar o Estado, não mais como agrupamento político e instituição, mas agora como Estado Nação, entidade agrupadora de uma sociedade e representante da mesma (Gellner, 1983). É a partir desta transformação que analisamos a atuação dos indivíduos como cidadãos no meio social nacional e no seu processo de tomada de decisão.

Entretanto, é notável o número de casos de utilização do nacionalismo e da cidadania cívica como meios para fortalecer regimes (nacionais) que não seguiam ou defendiam os preceitos democráticos contemporâneos. O mais notável é facilmente o da Alemanha Nazista, no qual o cidadão (garantido por jus sanguinis), mais do que defender os interesses da nação, estava disposto a invadir outros Estados em prol de exterminar os seus “inimigos”. Essa extrapolação do nacionalismo como combustível para uma cidadania autônoma é perceptível também em outros casos históricos. Durante a segunda metade do século XX, a América Latina é um oceano de exemplos devido às suas ditaduras militares, estas interessadas em manter-se no poder para enfrentar a “ameaça comunista” da União Soviética durante a Guerra Fria. Pegando o exemplo do regime brasileiro, o mesmo foi instaurado em 1964 após uma série de protestos civis, dentre eles, a mais famosa, a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, onde milhares de brasileiros foram às ruas, pela insatisfação política da época (Bueno, 2012). Obviamente a marcha deu força para o golpe militar que veio em seguida, e por isso pode ser condenada com veemência visto suas consequências e apoiadores duvidosos, entretanto não se pode dizer que a marcha não possui um caráter cidadão. O ser cidadão, principalmente o cívico, é antes de tudo, fazer algo. Apenas os não cidadãos é que não participam de atos públicos ou não se importam com o meio social nacional, visto que eles não se sentem cidadãos ou não querem ser. Participar de uma passeata é ser cidadão por haver o interesse de mostrar insatisfação ou apoio em algum quesito nacional.

"O ser cidadão, principalmente o cívico, é, antes de tudo, fazer algo."

Ainda nesta perspectiva, no livro “Brasil: Sempre” de Marco Pollo Giordani, é perceptível a situação vista acima. Ex agente do SNI (Serviço Nacional de Inteligência), atuante dentro do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna), Giordani escreve o livro contando sua atuação e posição perante a utilização de agências de informação pelo regime militar, o qual o próprio autor se diz apoiador e defensor. Giordani (1986) comenta ao longo do livro como se sentia bem ao executar suas funções, devido à percepção do mesmo que todo o regime, a censura, a tortura, a perseguição e o uso da força eram ações necessárias para a defesa nacional. Giordani se sente um cidadão pleno ao exercer suas atividades e ao fazer parte do SNI. Para tal, enfrentar a “ameaça comunista” dentro do país é a mais pura expressão da cidadania brasileira.

Pode-se dizer que as pessoas da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” exerceram sua cidadania? Sim. Pode-se dizer que Marco Pollo Giordani exerceu sua cidadania? Ele é tão cidadão que escreveu a obra citada anteriormente em resposta a um livro que criticava o regime militar (Brasil: Nunca Mais). O exercer sua cidadania é se preocupar com os problemas nacionais e buscar enfrentá-los como sociedade. Agora, é mais do que perceptível que diversos grupos irão ter diversas perspectivas sobre quais são os problemas nacionais que devem ser enfrentados. Isso não ocorre apenas no Brasil, mas provavelmente em todos os Estados Nação contemporâneos. E, infelizmente, haverá grupos como o de Giordani que não são tão favoráveis a respostas mais democráticas.

Assim, há uma clara ligação entre nacionalismo e cidadania cívica. Ambos se utilizam como amplificadores de seus próprios objetivos. Para alguém se sentir parte de uma nação é necessário demonstrar que a mesma pode (e deve) se manifestar e agir em prol dos interesses nacionais por esta pessoa possuir direitos, dentro desta nação, que outros grupos não possuem. Assim, a cidadania precisa de um sentimento de pertencimento para convencer os indivíduos a se engajarem na sociedade, sendo o sentimento nacionalista um ótimo combustível de cidadania cívica. A partir dessa colaboração, é interessante os Estados nacionais fomentarem uma maior cidadania cívica entre seus cidadãos visto que isto beneficia o discurso nacional em si, podendo então manter políticas intergovernamentais dentro do debate político, fortalecendo a soberania geral do Estado.

" [...] a cidadania precisa de um sentimento de pertencimento para convencer os indivíduos a se engajarem na sociedade, sendo o sentimento nacionalista um ótimo combustível de cidadania cívica."

Podemos perceber também que, por não ser um grupo homogêneo, uma sociedade mais cidadã, mais cívica em si, pode trazer pautas que não necessariamente defendam os interesses do Estado ou da Democracia. Como visto anteriormente, uma ação cidadã pode querer uma intervenção militar ou medidas mais conservadoras e autoritárias para certos setores, vista a desconfiança ou o medo na democracia e nas crises existentes, respectivamente. Obviamente essas respostas não são defensáveis. Entretanto é preciso observar este fenômeno, o da utilização da cidadania para a defesa de medidas autoritárias, como um fator social, um sintoma derivado de algum problema enfrentado naquela sociedade. No entanto, não cabe a este artigo analisar as causas desse sintoma, mas sim perceber como ele interage e é usado pelo Estado Nação no quesito da cidadania.

Incentivar uma maior participação dos setores da sociedade na vida pública acaba sendo mais vantajoso a curto prazo para o Estado, visto que as perspectivas nacionalistas ainda são as mais influentes e dominantes no cenário internacional. O Estado Nação continua sendo o ator representante do corpo social específico de cada região (Alter, 1989). Mesmo com o avanço das multinacionais como agentes de influência internacional, as empresas não possuem cidadãos, possuem funcionários. O vínculo associativo está delimitado pelo salário que o funcionário recebe, não a uma cidadania ou a direitos gerais. O Estado não paga salários aos seus cidadãos, ele entrega direitos aos mesmos em troca da participação da sociedade no meio público e no interesse no debate social. Sem esse interesse, a legitimidade de tal Estado se dissipa. O mesmo pode ter controle militar sobre o território, mas então ele se torna somente mais um regime autoritário, não sendo um órgão representante daquela sociedade.

Manter este debate nacionalista dentro da esfera pública traz consigo também a justificativa para fugir da tendência supranacional presente no século XXI. Uma população mais participativa consegue fortalecer o discurso da nação como prioridade do Estado, devido os mecanismos de pressão que esta faz sobre ele. Como exemplo, a União Europeia possui um caráter supranacional muito presente na sua estrutura, entretanto, a mesma ainda mantém diversos mecanismos intergovernamentais fortes dentro da organização (Cini e Borragán, 2013). Não obstante, é a partir da justificativa dos interesses nacionais que o Estado consegue manter diversos aspectos da sua soberania. Se a população não se interessa pela nação ou não se sente parte dela, não há interesse nacional e, sem esse interesse, não há justificativa para manter uma soberania ou intergovernabilidade tão presentes no cenário nacional e internacional. É por isso, então, que possuir cidadãos cívicos ativos é interessante aos Estados. Trazer à tona os deveres do cidadão nada mais é que buscar a legitimidade necessária para a continuação do Estado como entidade representante desta sociedade.

Ao pensar, então, em uma maior cidadania para melhorar a democracia, a ideia não necessariamente corresponde a uma regra inviolável - como vimos no exemplo brasileiro - mas faz parte de um mecanismo de legitimação principalmente dos governos democráticos. A utilização desta cidadania como ferramenta de legitimação e de manutenção do nacionalismo regional não é utilizada apenas por Portugal, União Europeia e Brasil, mas pode-se pensar neste modelo praticável (ou que se tem o interesse de utilizar) pela maior parte dos membros da comunidade internacional. É inteligente e prático utilizar essa estratégia para incentivar mais participação dentro do cenário nacional, mesmo que possa haver o risco de massificação de posições autoritárias dentro do mesmo. Entretanto, essa última situação ganha força e aplicabilidade quando são instauradas crises econômicas ou políticas dentro da nação, fomentando assim discursos mais inflamados e extremos no debate político nacional. Se não há estas condições dentro do Estado Nação, pouca inflação nacionalista autoritária é cultivada.

Presente na comunidade internacional (pelo menos, com certeza na Ocidental), a utilização desta estratégia pelos Estados nacionais serve para proteger os mesmos e garantir a continuação da necessidade do mesmo em um mundo com rápidos e fortes processos globalizantes, o qual é o mundo do século XXI. Mesmo que criados antes do processo de globalização ou da necessidade de manter o Estado Nação influente, utilizar a cidadania cívica como ferramenta de manutenção da importância do mesmo, partindo de um incentivo à participação nacional e sentimento de pertencimento de um grupo social e nacional, ganha força crescente com o fim da Segunda Guerra Mundial e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (Heywood, 2015). Este marco histórico é também a universalização de direitos, sem necessariamente demandar deveres. Os deveres continuam sendo empregados pelos Estados, principalmente agora que certos tipos de direitos, os Direitos Humanos por se dizer, começam a ser “universalizados”. Não obstante, esse marco é o começo da inserção, cultivação e idealização do “cidadão global” no mundo. Havendo direitos irrevogáveis ao ser humano, a necessidade de Estados Nação que garantem certos direitos começa a ser ameaçada, visto que existe uma possibilidade de cidadania universal, não existindo os deveres - a presilha nacionalista nos indivíduos e nas sociedades (O’Byrne, 2003).

"Havendo direitos irrevogáveis ao ser humano, a necessidade de Estados Nação que garantem certos direitos começa a ser ameaçada, visto que existe uma possbilidade de cidadania universal [...] "

Essa ideia, ainda muito metafísica e idealizada, querendo ou não é uma perspectiva que ameaça a própria existência do Estado como instituição representante, principalmente com o fortalecimento das organizações internacionais, representantes de diversos grupos sociais, e de políticas supranacionais no debate público. Deste modo, além de fortalecer sua posição para continuar relevante, os Estados nacionais pouco (ou nada) têm interesse em incentivar o debate da cidadania global ou da cidadania cosmopolita, visto que ambas são oposições, mesmo que não intencionais, ao modelo de Estado vigente. Assim sendo, cenas como a de tropas montadas estadunidenses usando laços para expulsar imigrantes haitianos na fronteira do México com os EUA (Human Rights Watch, 21 de setembro de 2021) continuarão acontecendo, independentemente do governo na região. Aceitar esses imigrantes em massa é, antes de tudo, entender que há espaço para grupos sociais e nacionais diversos na cidadania e participação social do país. Mesmo que os EUA sejam a “terra da liberdade e oportunidade”, admitir tal adesão de imigrantes em situação de necessidade é dar um passo ao processo de cidadania global: na qual, independentemente de quem tu sejas ou de onde tu és, haverá espaço e direitos garantidos nesta região. Não aceitar estes imigrantes, independentemente do país, não é uma política de governo dos EUA, mas sim uma política de Estado.

Retornando, enfim, ao “slogan” referido no início do artigo, em um mundo ideal seria ótimo que refugiados ou imigrantes pudessem obter direitos de cidadania independentemente do país onde fossem e que, de tal maneira, isto fortalecesse a democracia local e o acolhimento destas populações na região. Não vivemos em um mundo ideal. Longe disso, ainda há muita política Estatal e nacional que depende da não existência da cidadania global. Admitir esta como um efeito inevitável também não é correto, visto que não há como prever ou garantir que algo vá ocorrer, como muitos “historiadores”, filósofos e políticos já fizeram. Observando a tendência atual e os processos históricos que levaram a mesma, pode-se dizer que a cidadania sem deveres e global ainda é uma ideia muito metafísica. A fala então trazida no “slogan”, pouco tem a oferecer como a solução de todos os problemas. Não podemos dizer que aumentar a cidadania cívica traz consigo necessariamente uma melhora na democracia local, o que se pode dizer é que tal cidadania torna a sociedade mais participativa e ciente do cenário político, social e econômico nacional. Nesta perspectiva, aumentar esta participação traz à tona o debate público como palco para os interesses nacionais, fortalecendo, assim, o discurso da necessidade do Estado Nação como representante legítimo de determinada população.

Podemos pensar, assim, se a manutenção deste sentimento nacional é algo positivo para o regime social e internacional. Manter o mesmo é cultivar o status quo existente, beneficiando aqueles que já se beneficiam, sejam Estados, multinacionais ou OIs. Entretanto, ao questionar a utilização da cidadania como ferramenta de manutenção dos Estados, pode-se desenrolar uma mudança na relação Estado com Estado, e Estado com indivíduo. Não cabe aqui dizer se tal mudança seria “boa ou ruim” para o nosso mundo, mas cabe a este artigo instigar o pensamento crítico do leitor e perguntar: uma maior cidadania gera mais democracia?







Referências bibliográficas


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Sobre o autor:

Leonardo Gomes Bortolini, brasileiro, estudante do 2º ano de Relações Internacionais da Universidade de Coimbra, membro do corpo acadêmico do Grupo de Estudos Maria Quitéria, Coordenador do Pelouro de Pedagogia do NERIFE/AAC, Tesoureiro da SDUC, ex-Secretário Geral e membro fundador do Clube de Relações Internacionais e Simulações Diplomáticas do Colégio Marista Rosário em Porto Alegre.


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