Esta entrevista conta com a ilustre participação do professor e investigador Xavier Arrizabalo. Antes de iniciar as perguntas, pedimos que se apresentasse e falasse um pouco da sua trajetória profissional e influências intelectuais.
Para começar, não é fácil resumir, pois estou na área académica há mais de trinta anos. Sou doutorado pela Universidade Complutense (UCM) de Madrid na área de economia política mundial. Fiz minha formação académica na UCM em economia e licenciatura em sociologia, mas também tenho mestrado pela Cepal-ILPES, no Chile.
Participo em vários grupos de pesquisa internacionais e espanhóis. Sou responsável por uma rede de pesquisa ibero-americana denominada “Economia política: do mercado de trabalho à sociedade social”;, e co-dirijo o grupo de pesquisa denominado: “Economia política: capitalismo e desenvolvimento desigual”.
A minha investigação centra-se na análise das economias europeias, mas sobretudo das economias latino-americanas através de uma abordagem crítica da economia política de cariz marxista. Sobre minha pesquisa, publiquei alguns livros dos quais podemos destacar: “Chile: milagre ou quimera” (uma nova edição saiu recentemente), “Capitalismo e a economia mundial" e "Lições da Revolução Russa”.
Em Imperialismo, destruição das forças produtivas e crise crónica do capitalismo, argumenta que o imperialismo é um componente necessário do capitalismo. Pode explicar por que isso acontece e como o imperialismo contribuiu para a crise do capitalismo?
Há um debate teórico iniciado na primeira metade do século XX que culminou na formulação defendida por Lenin segundo a qual o imperialismo é uma etapa do capitalismo.
Fazendo uma revisão histórica primeiro, John A Hobson, no seu livro Imperialismo, um estudo, formulou a noção de imperialismo, associando o conceito a uma opção de gestão do capitalismo baseada no colonialismo e na conquista de novos mercados. Hobson aponta que existe uma alternativa baseada em melhores salários e aumento do mercado interno. O argumento do autor não foi muito bem recebido pela economia neoclássica ascendente da época. São precisamente os marxistas que melhor aceitariam esta tese. Ao contrário de Hobson, Lenin defendia que o imperialismo não é uma opção, mas a etapa em que o capitalismo termina, sendo intrínseco ao sistema económico dominante num determinado período de crises e revoluções.
O imperialismo expressa a “crise crónica” do capitalismo ainda presente. Atenção, porque falo de crise crónica entre aspas! Porquê “crise crónica”? Fazendo um tour pelas crises, embora estejamos em 2023, ainda somos afetados não só pela crise atual, mas também por uma sucessão de crises. Hoje, ainda estão presentes crises passadas, como a dos anos 1970 ou a crise financeira de 2008. Assim dito, falo de inflação, desemprego ou superprodução que constituem elementos determinantes para identificar a lógica sucessiva e cumulativa das crises.
"Fazendo um tour pelas crises, embora estejamos em 2023, ainda somos afetados não só pela crise atual, mas também por uma sucessão de crises."
No entanto, ambos falam de crise e revolução. Pode parecer extemporâneo falar em revolução, mas na realidade existem processos em diferentes partes do mundo que têm um conteúdo profundamente questionador do sistema. Sem ir muito longe, na França de hoje, vários protestos estão a ocorrer contra a nova lei das pensões. Protestos a tal ponto que nem Macron nem seus ministros podem deixar os seus escritórios no Eliseu.
Nesse sentido, o capitalismo possibilitou o desenvolvimento das forças produtivas, baseado na exploração e pilhagem colonial. O sistema chegou a um certo ponto que é uma força destrutiva - destruiu de forma sistemática, desvalorizando a força de trabalho. Em Portugal ou Espanha isto traduz-se, por exemplo, em negar aos jovens a capacidade de construir uma vida autónoma e digna, com emprego, salário ou habitação.
No contexto da “crise crónica” do capitalismo, destacou a importância de analisar o papel do neoliberalismo e da financeirização na economia mundial. Poderia discutir os mecanismos específicos pelos quais a financeirização contribuiu para a “crise crónica” do capitalismo?
Falando primeiro do neoliberalismo e depois da questão da financeirização; Ainda hoje estava a falar sobre o caso chileno, que tive a oportunidade de examinar na minha nova edição ampliada do livro Chile: milagre ou quimera - representa o berço do neoliberalismo, expresso no sentido de um golpe de estado, em 1973. Diante de um risco revolucionário que desafiava os privilégios de uma minoria económica, a opção da burguesia chilena, supervisionada e dirigida pelo império estadunidense, questionou abertamente todo o quadro democrático e deu um golpe em 11 de setembro de 1973.
No entanto, esse golpe tem uma história anterior, e isso é menos conhecido - desde 1945, um acordo de colaboração entre a Universidade Católica do Chile e a Universidade de Chicago que procurava formar profissionais capazes de aplicar os neoliberais. Não é por acaso que, anos depois, intelectuais neoliberais como Milton Friedman, entre outros, estão no Chile a assessorar a sangrenta ditadura de Pinochet.
É muito tentador identificar o problema na aplicação de políticas neoliberais que impõem um capitalismo mau e desigual, porém, estaria a abrir a ilusão de que poderia haver outro capitalismo. A política não está imune às dificuldades da acumulação capitalista, por isso, mais do que falar de uma política neoliberal, falo de um fundo do monetarismo, ou seja, a expressão institucional da dominação estadunidense sobre sua periferia. Ao contrário do puro credo teórico do neoliberalismo, o Estado de Pinochet interveio para atender às exigências do capital que não deixa espaço para a menor reforma ou conciliação.
Em relação à financeirização, Marx no Livro III de O Capital explicou que na economia capitalista estava sujeito à lei que a taxa de lucro tende a cair. Então, é um problema inerente ao capitalismo, pois a finança não é apenas uma fuga do capital, quando este não tem possibilidade de se movimentar ou investir numa atividade produtiva. Embora a financeirização expresse a aceleração das contradições do sistema, pois a finança participa na distribuição do valor produzido, mas não atua como multiplicadora. Portanto, a sub expansão que ocorre nas finanças não é a causa da crise, mas sim uma correia de transmissão que se alarga e acelera as crises.
Falando agora da União Europeia, em A UE, nem união nem europeia: uma instituição antidemocrática para sistematizar a destruição das forças produtivas na Europa, considera que a União é uma instituição antidemocrática cuja política económica foi prejudicial. Poderia falar sobre o papel da UE e sua política económica?
Desde as suas origens, o que hoje se chama União Europeia tem na sua base uma opção pelos EUA, consagrada em primeira instância no Plano Marshall, ou melhor, no Plano de Reconstrução Europeia. Na verdade, este plano não era um simples plano de reconstrução económica, mas sim uma certa modalidade de reconstrução europeia alinhada com os interesses do capital norte-americano, reduzindo o peso e a importância das fronteiras nacionais.
Em suma, seguimos no tempo até à crise financeira de 2008 e à intervenção da Troika em Portugal, na Grécia, essencialmente nos países conhecidos como PIGS. Trio em russo, a Troika foi um agrupamento tripartido entre a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional, supervisionado pelos EUA, que reforçou a influência dos EUA nas políticas europeias. Luka Papademos, as figuras de Mario Monti que naquela época lideravam seus países eram técnicos extremamente próximos do capital financeiro estadunidense.
Atualmente é inevitável ignorar que os países da UE estão subordinados aos Estados Unidos. Diante da guerra na Ucrânia, os países europeus estão totalmente alinhados com Washington, procurando aumentar seus gastos militares em 2% do PIB conforme exigido pela OTAN. De modo que a União Europeia não é uma união, visto que existem interesses antagónicos entre o capital e o trabalho, nem é europeia, sendo apenas um mecanismo de subordinação ao poder dominante que são os EUA.
No que diz respeito à política da União Europeia em particular, no ano de 1986 assiste-se a um ponto de viragem marcado pela adoção do Acordo Único que introduziu a livre circulação de mercadorias e o mercado único que pôs em causa uma certa possibilidade de uma política autónoma. Após o Acordo Único, esse caminho foi aprofundado com o Tratado de Maastricht em 1992 e o Pacto de Estabilidade e Crescimento.
Essa formulação política e económica expressa nos tratados não pode ser dissociada do seu contexto histórico marcado pela consolidação do fundo monetarista, ampliando as políticas de ajuste também na Europa. União cujos órgãos de gestão não estão sujeitos a qualquer controlo democrático, por exemplo, o Banco Central Europeu. Isso ocorre porque o desenvolvimento democrático dos Estados pode constituir um obstáculo significativo.
Fazendo um paralelo com o artigo A Retake of North American Hegemony da economista brasileira Maria da Conceição Tavares, acha que a intervenção da Troika na Europa consistiu num momento de retomada da influência americana no continente? Como analisa esse retorno ao desejo de autonomia estratégica da UE em relação à China e aos EUA?
A noção de hegemonia é um conceito complexo que integra aspectos económicos, produtivos, comerciais e financeiros, mas também aspectos culturais, políticos e, principalmente, militares. Assim, importa sublinhar que hoje os EUA continuam a ser responsáveis por 38% de toda a despesa militar mundial.
No que diz respeito à União Europeia, há um exemplo que revela claramente o carácter fictício e ilusório do projeto europeu, é o caso da economia alemã e também um pouco da francesa. A Alemanha é uma potência económica, produtiva, industrial e comercial, exceto nas finanças. Além disso, poderíamos dizer assim que a Alemanha é um anão político e militar. Em 9 de fevereiro de 2022, 15 dias antes da guerra na Ucrânia, o chanceler alemão Olaf Scholz estava numa conferência de imprensa com o presidente Biden, e foi questionado sobre o gasoduto Nord Stream 2, que poderia começar a operar a qualquer momento. O chanceler hesita e no final não responde porque Biden o interrompe e diz que esse gasoduto nunca iria entrar em operação. Claro que, 15 dias depois, começa o conflito russo-ucraniano e o governo alemão anuncia um aumento da despesa militar em 100 mil milhões de euros, montante que nunca foi destinado a despesas de saúde, educação ou sociais em geral na pandemia.
"A Alemanha é uma potência económica, produtiva, industrial e comercial, exceto nas finanças. Além disso, poderíamos dizer assim que a Alemanha é um anão político e militar."
Acrescentando outro exemplo: na bolsa francesa, as 40 maiores empresas listadas são controladas por fundos de investimento americanos. No seio do capital francês existe uma certa posição de controlo de fundos americanos. Creio que estes exemplos representam bem a ilusão de uma possibilidade de autonomia europeia.
No que diz respeito à China, quero destacar três coordenadas sobre a natureza contraditória da economia chinesa: primeiro, há que ter em conta a dimensão do país, claro, mas também que é uma economia planificada seguindo planos quinquenais. Em segundo lugar, esse planeamento chinês é burocrático e não coloca no centro o bem-estar da população sem a possibilidade de crescimento e inserção mais potente na economia mundial. Por fim, e isso é fundamental, a China é incerta na economia mundial, economia mundial caracterizada pelas dificuldades mencionadas na primeira pergunta, na fórmula de uma “crise crôónica”.
A ilusão de que poderia haver uma revelação por parte dos EUA ou da China, uma nova etapa de crescimento e redistribuição da economia mundial choca com o facto de que o capitalismo e o mercado mundial não são capazes de absorver as necessidades de acumulação de capital resultando em guerras comerciais e a financeirização como forma de aumentar artificialmente a procura. Não acredito que a China possa ser um relé que impulsione o processo de acumulação capitalista em escala mundial e isso estende-se a outros países, outros casos ou alternativas, como os BRICS.
Na teoria do sistema mundial, a Europa é considerada o centro da economia mundial, mas pelo que disse, esta depende dos Estados Unidos. A Europa não deveria ser considerada uma semiperiferia e países, como Portugal, periferias europeias?
Adotamos teoricamente certas categorias teóricas que nos permitem nomear os fenómenos que ocorrem. Claro que dizemos que há centro ou periferias, países desenvolvidos ou subdesenvolvidos, economias avançadas ou dominadas. Ressalto que, em qualquer um desses conceitos, pode identificar-se a existência de um desenvolvimento desigual entre os países, mas também de um desenvolvimento combinado, como propôs Trotsky.
Lembrando esta fórmula trotskista de desenvolvimento desigual e combinado, como explicar hoje que a primeira potência mundial, os EUA, tem cidades onde a expectativa de vida é menor que em Bangladesh?
Isso é contraditório e explica-se, fundamentalmente, pela ideia de desenvolvimento desigual e sobretudo combinado, um desenvolvimento que integra elementos diferentes, particulares e contraditórios.
No caso da Europa, também coexistem diferentes realidades e até mesmo dentro dos países. Primeiro temos que lembrar que o sistema internacional é hierárquico e existem níveis. Atualmente, os Estados Unidos são a primeira potência, seguidos pela China e depois Alemanha ou França, potências imperialistas em declínio e maior subordinação.
Em segundo lugar, ao falar do caso europeu, há também uma hipótese explicativa que procura reproduzir a análise da divisão internacional do trabalho no continente europeu. Da mesma forma que existe uma divisão histórica e internacional do trabalho entre países mais industrializados e outros mais “atrasados” e agrícolas na Europa, o mesmo ocorre na nossa economia regional.
Se analisarmos os saldos comerciais, vemos a situação de algumas economias bem mais fragilizada. Vou contar um facto sobre a economia espanhola. Hoje, na Espanha, o setor do turismo, que representa 13% do Produto, acaba de liderar no PIB como a primeira despesa em relação à indústria. Essa é uma informação muito significativa, pois o turismo seria bem identificado como uma classificação pelo economista Fernando Fajnzyber, quando disse que havia competitividade autêntica e competitividade espúria.
A competitividade autêntica é aquela que resulta da integração do progresso técnico e da qualificação da mão-de-obra, ao contrário da competitividade espúria baseada na exploração de recursos naturais abundantes e mão-de-obra barata. Quando se vê como funciona o setor de turismo, pode-se facilmente concluir que essa definição de competitividade espúria está presente.
Finalmente, acha que a transição da economia internacional por um caminho socialista é o caminho para superar as contradições do capitalismo?
O que caracteriza a perspectiva de resolução de problemas parte de um diagnóstico. Os problemas dos quais hoje se padece não são o resultado de uma determinada política económica, ainda que uma política ou outra possa agravá-los, mas sim o resultado da dinâmica de acumulação histórica do capitalismo, na sua fase imperialista. Há, assim, necessariamente um questionamento cada vez maior das condições de vida. Nesse sentido, em última análise, há um desafiar disso.
Claro que o que nos interessa discutir hoje é: quais são os primeiros passos? Penso que os primeiros passos não são maximalistas, mas concretos e tangíveis, tendo em conta que não há saída individual para os problemas sociais. Consequentemente, o último passo é a organização política, com a qual compartilhamos interesses maioritários. No entanto, uma organização para fazer o quê? Fazer o que verdadeiramente define a expressão “defender a pretensão e os direitos”, é defendê-los incondicionalmente. Incondicionalmente significa sem colocar uma condição em qualquer meta de déficit ou dívida. São objetivos, direitos e exigências intransferíveis e inegociáveis, como educação, saúde, pensões, moradia e emprego decente.
"Penso que os primeiros passos não são maximalistas, mas concretos e tangíveis, tendo em conta que não há saída individual para os problemas sociais. Consequentemente, o último passo é a organização política, com a qual compartilhamos interesses maioritários."
Pode não parecer muito, mas se a classe trabalhadora e os setores populares, com as suas organizações, partidos ou sindicatos, se orientassem verdadeiramente nessa defesa incondicional até o fim, abrir-se-ia um caminho que levaria a uma rutura, permitindo que os problemas fossem resolvidos. Essa reflexão é bastante desenvolvida no meu livro Ensinamentos da Revolução Russa, cujo epílogo aborda a análise da situação atual.
Sobre o entrevistado:
Xabier Arrizabalo, professor e doutorado em economia pela Universidade Complutense de Madrid.
Participa em diversos grupos internacionais e espanhóis de pesquisa sobre problemas do capitalismo e desenvolvimento através de um enfoque crítico e hetererodoxo.
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